. A partir de 2001, com a lei 10216, que reorienta o tratamento dado aos pacientes psiquiátricos, consolidou-se um novo contexto para discutir a presença da psicanálise nos dispositivos de Saúde Mental no Brasil. Por um lado ela visa devolver ao louco seu direito à cidadania. Por outro, cria mais um ideal que pesará sobre o sujeito em sua relação com as instituições que se incubem de tratá-lo. Passa-se do direito ao dever a cidadania. O louco perde seu privilégio para inscrever-se na lei comum. A reintegração a sociedade se faz dentro dos limites da lei.
. Não há reivindicação de direitos que não seja presidida pelo imperativo de uma identificação ideal. O direito a reinserção social é, no fundo, direito à identificação. Por mais que se criem políticas de inclusão das “diferenças” o sujeito, “dito”, incluído é aquele que se integra à coletividade agrupada em torno de seus ideais. Ele é inserido quando trabalha, se diverte, se casa, enfim, quando seus valores privados se fundem nos valores da comunidade a qual pertence. Importa menos se o sujeito em questão está completamente alucinado ou prestes a uma passagem ao ato violenta.
. Deste modo podemos entrever um paradoxo nas políticas de inclusão. A exclusão é inicialmente percebida como uma limitação, mas sua superação se faz justamente no momento em que o excluído se submete aos limites do Outro. Temos então um o sujeito se inclui no campo social que é, ele mesmo, configurado por um ideal que lhe é externo. É esta a lição freudiana a ser extraída a partir de seu texto sobre a psicologia das massas de 1921. Para que o sujeito seja incluído, é necessário delimitar os limites do universo ao qual o sujeito poderá contar-se como mais um. Inclusão social significa aceder aos limites da lei para todos.
. Esta operação, contudo, deixa um resto que a psicanálise lacaniana denomina de objeto a. Nem tudo sucumbe ao processo de identificação. Enquanto a lógica da cidadania obedece a cálculos coletivos, o cálculo da subjetividade é tecido por estratégias privadas onde o Outro fracassa em dar aquilo que o sujeito demanda. A lei, neste enfoque, se confronta com uma relação de impossibilidade. É o que nos permite passar do social à clínica. Não se trata da clínica do social, mas da clínica no social.
. Assim, ao invés de uma política de erradicação do sintoma, é preferível uma multiplicação da escuta visando ampliar o acesso aos dispositivos clínicos. Somente é possível pensar no conceito psicanalítico de transferência em Saúde Mental quando existe uma pergunta sobre a função do sintoma. É neste ponto que a psicanálise acrescenta algo às políticas que lidam com a loucura. A dimensão política, para a psicanálise, visa salvar a clínica de sua aderência ao sonho de uma sociedade sem sintomas. Hervé Castanet é firme em sua tese, referindo-se ao panorama atual das políticas de saúde mental (CASTANET, 2006):
A promoção do conceito de saúde se opõe ao conceito de clínica. A valorização da saúde implica na desvalorização da clínica. A promoção política generalizada da saúde – princípio que se quis ativo de precaução a serviço dos usuários e pacientes – implica no desaparecimento da clínica psicanalítica. Uma conseqüência se deduz: escolher a clínica psicanalítica não é se opor à saúde, é desconstruir o artifício ideológico que marca esta referencia à saúde; em suma, é se perguntar sobre qual o campo de discurso e de visibilidade clínica que a referência à saúde abre. (CASTANET, 2006, p.34) |
. Faz-se necessária, portanto, uma separação entre o cidadão ideal e o sintoma como resto, intratável pelo social. Para a psicanálise, esta separação apenas se efetua no momento em que se particulariza uma demanda através do dispositivo da transferência. Este dispositivo, invenção da clínica psicanalítica, impõe um problema à Saúde Mental. Ele inclui a contingência, ou seja, a imprevisibilidade de um encontro que o gestor público pode facilitar, mas nunca calcular exatamente suas coordenadas. Incluir a transferência nas estratégias da Saúde Mental implica em restituir à clinica um espaço que ela vem perdendo gradativamente. A distribuição dos serviços, nesta perspectiva, não pode observar exclusivamente os critérios de praticidade, acessibilidade e logística das equipes de gestão. A clínica implica em um privilégio que escapa às estratégias universais.
. Miller nos relembra que privilégio é ao mesmo tempo lex, lei, e privum, privado. É o que no latim jurídico trataria do paradoxo da lei que concerne o particular. Assim, enquanto a lei é para todos, o privilégio é a lei que reintroduz o particular no universal (MILLER, 2007). A clínica da transferência é clínica do privilégio.
. Regulação versus transferência
. A transferência existe precisamente porque o objeto a, pivô de sua instalação, escapa às coordenadas lógicas. Ele não se orienta pela bússola do Outro. Neste sentido o tratamento psicanalítico está em pleno desacordo com os modelos de eficiência em gestão, tão prezados pelos sistemas públicos de Saúde. Tomemos como exemplo a implantação dos serviços de regulação de pacientes que são implantados, com maior ou menor habilidade, em boa parte dos sistemas municipais de saúde.
. As novas práticas de regulação que visam equacionar o crônico problema de falta de vagas nos dispositivos de Saúde Mental, ao tentar importar o modelo médico, habitualmente não levam em conta que tratar o sofrimento psíquico é diferente de tratar a doença corporal.
. Um cidadão que sofra um infarto ou tenha uma crise de vesícula pode ser regulado – ou seja, encaminhado - para qualquer hospital da rede, o importante é que seja solucionada o mais rapidamente possível sua situação clínica. Com o sofrimento psíquico é diferente. Levar em conta a transferência nos dispositivos de Saúde Mental implica em agregar a demanda subjetiva ao dispositivo regulador.
. É o que faz com que cada vez mais se busque a psiquiatria de setor mesmo para os caso graves de doença mental. Expor o esquizofrênico ao frágil múltiplo da rede é negligenciar que a transferência tem um papel mais importante do que simplesmente alocar um paciente em um serviço qualquer.
. É comum a queixa das equipes de Saúde Mental de que o atendimento vai mal por que a rede está saturada, as filas de espera nos CAP’s são enormes e não há vagas para hospitalização. Tudo isto é verdade, mas, no fundo, se escamoteia o verdadeiro problema. O mais organizado e disponível dos CAP’s não logra sucesso se negligenciar que a transferência se estabelece através de um significante particular do sistema e não no que este tem de universal. O paciente retorna ao serviço por gostar da comida, de certo profissional, em suma, de uma particularidade que se torna significante da transferência. Ou seja, o desafio para o gestor público da Saúde Mental é pensar uma dispositivo de regulação que inclua a transferência.
. O desconforto do mundo moderno diante do sintoma é patente. A psicanálise, na contracorrente deste desconforto, reserva um lugar ao sintoma. Para ela, é possível livrar o sujeito de seu sofrimento sem que a função do sintoma seja vista apenas como prejudicial. Alimenta-se a esperança de poder eliminá-lo com os avanços da ciência. Espera-se que ele passe despercebido no mundo se for aceito socialmente. Fortalece-se cada vez mais a premissa de que todo sintoma é handcap, déficit.
. A transferência, como pergunta sobre o sintoma, torna-se incômoda ao clínico atual que exige precisão e constância nas suas avaliações científicas. Seguindo Lacan, mais nos aproximamos de uma psiquiatria científica mais flertamos com a foraclusão da transferência como conceito operacional no tratamento clínico. De que modo se faz o retorno no real da transferência foracluída da prática clínica? A resposta está no aumento exponencial dos pacientes nos ambulatórios de saúde mental, onde o conceito de cura é tão improvável quanto uma real escuta do sujeito para além de sua queixa.
. O que faz amarração?
. A Saúde Mental tem como paradigma a abordagem biopsicossocial. Esta amarração, contudo, em nada se assemelha ao que propõe Lacan. No Seminário RSI, os registros do Real, Simbólico e Imaginário se sustentam através da amarração borromeana, amarração que é a função própria ao nome do pai. O pai como função, f(x), deixa de se inscrever como elemento de um dos três registros, elemento qualquer "x", para ser a sustentação que permite ao sujeito se dizer "eu".
. Aflalo considera que a abordagem biopsicossocial é o verdadeiro sintoma da Saúde Mental. Apesar do social, tão caro às suas bases, a abordagem não garante nenhuma amarração que o situe além da fragmentação dos diversos discursos.
. Na tentativa de reconciliar esta fragmentação, toma forma no momento atual um discurso que, em sua pretensão científica, substitui o papel do pai pela norma científica. É o que faz da clínica atual uma teratologia (AFLALO, 2005). Assim, o sofrimento psíquico, para Aflalo, é reduzido a uma causa primária, genética, e uma causa secundária, adquirida. Esta última traduzida por uma constelação de maus condicionamentos a ser demonstrada pelo cognitivismo. O sintoma “não é mais um fato de linguagem encobrindo uma verdade, mas um erro de julgamento a ser corrigido”( AFLALO, 2005, p.37)
. Os princípios da saúde mental, na busca do ser biopsicossocial, procuram fornecer o arcabouço identificatório do ser não, levando em conta que a base que o sustenta ex-siste aos discursos que a condiciona. Ou seja, quando o pai deixa de ser um nome para ser uma função – função de amarração – ele se torna heterogêneo aos três registros. Esta função, contudo, não é a mesma para todos. A amarração, em relação à lei, estará permanentemente do lado do privilégio.
. Há, portanto, um resto que escapa aos programas de Saúde Mental. Este resto é onde se aloja a clínica psicanalítica. Podemos nos interrogar sobre a clínica quando esta não leva em conta a invenção particular da função de amarração. Na ausência de uma clínica que extrai do universal da linguagem o privilégio da enunciação, o profissional da saúde mental se servirá do recurso in extremis do princípio da realidade em detrimento do sintoma.
. Na conversação multidisciplinar a psicanálise se destaca por explicitar esta diferença, não como um discurso de exceção e sim como um discurso que recolha as exceções, ou seja, os fragmentos de ditos que não fornecem sentido algum à saúde mental e que representam, porém, o que o sujeito tem de mais íntimo. Trata-se de apreender a significação privada de um significante, o órgão de gozo que escapa à descrição anatômica, as invenções, enfim, que garantem ao sujeito uma amarração que lhe assegure um lugar no mundo dos homens.
. Estes restos de dizeres, verdadeiros ruídos de comunicação, são a principal justificativa para a participação do psicanalista nas equipes de saúde mental. A pertinência da psicanálise nestes serviços se funda em uma ausência de saber pré-estabelecido sobre a enunciação do paciente. Para tanto ela parte da premissa que a linguagem, em sua transmissão de pai para filho, nunca é a mesma. Esta transmissão se choca com o fato de que o sujeito inicialmente se apropria da linguagem como instrumento de gozo, bem antes da função de comunicação. É o que Lacan chama de gozo da Lalíngua.
. O Outro como parceiro da comunicação falha ao não poder nomear o ser de gozo do sujeito. Porém, como "a condição do sujeito (neurótico ou psicótico) depende do que se passa no Outro" (LACAN, 1966, p.549), é desse Outro que o sujeito extrairá seu nome próprio deixando perceber a verdade do processo de nomeação: não é o pai que nomeia e sim o filho que obtém seu nome ao se servir do pai para constituir seu sintoma.
. Atualmente com a psiquiatria científica, amparada pelo cognitivismo que vê no insensato um erro da cognição, observamos que o que se busca é a transmissão sem restos, a transmissão sem defeitos. Como se fosse possível uma clivagem total que entregasse o gozo real para a ciência e a comunicação perfeita para os teóricos da cognição. Podemos perceber que ambos os discursos se furtaram à pergunta sobre a invenção particular do louco como estratégia para tentar fazer amarração.
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA:
AFLALO, A. (2005) "A orientação lacaniana ou a 'ciência' psicanalítica?" Opção Lacaniana, v.42.
CASTANET, H. (2006) "Un monde sans réel." La Rochelle: Association Himeros.
MILLER, J.-A. (2007) "Un divertissement sur le privilège." La cause freudienne - nouvelle revue de psychanalyse, v.65.
LACAN, J. (1966), Écrits, Paris Ed. Seuil |