. Lacan sublinha que, entre o homem e a mulher, a separação mais  fundamental passa pelo muro da linguagem. “O ser do corpo, certamente é  sexuado”, mas quando se trata de estudar a sexuação do ser falante, Lacan  considera que isso é “secundário (Seminário 20), porque sua sexuação resulta,  em primeiro lugar, de acontecimentos de discurso aos quais os órgãos deverão se  conformar (ou não). Disso são testemunho as inadequações entre o sexo anatômico  e o sexo psíquico. As fórmulas da sexuação elaboradas entre 1971 e 1973  encontram sua formalização mais acabada na página 105 do Seminário Mais  ainda... 
                          . Tais fórmulas escrevem uma lógica dissimétrica das posições homem e  mulher. Lacan, no Saber do Psicanalista, já teria dito que os pares  humanos não copulam, eles falam. As fórmulas mencionadas têm seu ponto de  partida num dos dados menos discutíveis da experiência analítica: a  impossibilidade de escrever a lógica da relação entre os sexos, que está  resumida no aforismo que enuncia: “Não há relação sexual”.O que a cópula sugere  e nosso cantor mais popular, Roberto Carlos, diz em sua canção, O Côncavo e  o convexo, é relação complementar. O sujeito só pode alimentar a ilusão de  uma fusão com o outro graças ao imaginário suscitado pela paixão amorosa. Canta  o poeta Guilherme Arantes: “amanhã será um novo dia da mais completa alegria  que se possa imaginar... Mais advertido que seu colega, coloca na perspectiva  amorosa totalizadora dos neuróticos o encontro absoluto no futuro assintótico.  
                            Não vamos nos estender na explicitação das fórmulas da sexuação neste  trabalho dado o objetivo precípuo de discuti-las somente no que interessa ao  tema proposto. Portanto, a posição dos seres falantes que se situam do lado  masculino estará, por ora descartada embora saibamos que nas fórmulas um lado  se correlaciona com o outro.  
                          . A posição dos seres falantes que se situam do lado do outro sexo é  diferente. Parte da proposição universal negativa – – que especifica que a mulher está “não-toda” no gozo fálico.  Sua relação com este último revela ser de contingência e não de necessidade.  Dá-lhe acesso a um gozo, não complementar, mas suplementar, gozo além do  falo, chamado Outro gozo. Este último trabalhado por Lacan no Seminário Mais  ainda... revela ser um gozo enigmático, louco, impossível de ser circunscrito:  não está sob a lei significante, não está proibido, não está civilizado pelo  Nome-do-Pai. O Outro gozo é um gozo do corpo, a partir desse seminário. 
                          . Todos podemos constatar que a relação do sujeito com seu corpo não é de  posse, mas de exterioridade. Os neuróticos falam: “meu corpo”, não “eu corpo”.  “O Outro é o corpo”, disse Lacan em Encore... Lembremos que essa palavra  faz homofonia em francês com en corps, no corpo, e o seminário que leva  este título foi traduzido para o português como mais, ainda.  
                            Para lembrarmos dos números naturais, o corpo, lugar onde se inscreverão  os primeiros significantes, equivale ao conjunto vazio. A intervenção do Pai  constitui o corpo como deserto de gozo, e orienta o sujeito ao gozo fálico,  cujo meio é a linguagem. “Então o sujeito encontra sua satisfação, não no  corpo, mas por interposição do significante fálico, em um forado-corpo: o  objeto da pulsão”. (MALEVAL, 2002, p. 116). Então, uma mulher está “não-toda” submetida  a esse processo: o gozo do Outro designa o que se subtrai. Nem toda mulher pode  experimentá-lo enquanto que alguns homens podem sentir seus arrebatamentos: as determinações  produzidas pelo significante não estão necessariamente de acordo com a anatomia  do ser falante. No presidente Schreber, a invasão do Outro gozo é excessiva.  Ele tem certeza de que Deus lhe exige manter-se num estado constante de gozo,  de tal forma que, para satisfazê-lo, tem que se esforçar por todos os meios  para proporcionar-lhe gozo, o que é uma contradição, só resolvida pelo gozo  Outro, isto é, se transformar em mulher. Experimenta a sensação de que seu corpo  se feminiza, fenômeno que, na psicose, Lacan nomeou eviração.  
                          .  A mulher n  ão é alheia ao gozo fálico, está “não-toda” nele, de  tal sorte que, no que se refere ao gozo, desdobra-se em  , numa parte, devido à interposição do falo, articula-se ao gozo  do homem. Na segunda é atraída a Deus, a um amor infinito. De outro modo, o  homem tem como parceiro somente o objeto a inscrito do outro lado da  barra (do lado mulher). 
                          .  Só por meio de seu fantasma, lhe é dado alcançar a sua  parceira: . Na posição mulher, o sujeito, seja qual for seu sexo  orgânico, faz parceria com o homem sob o modo do objeto, quer dizer, como representante  do que causa seu desejo, através do falo. 
                          . A coleção das mulheres é articulável por intermédio do discurso, mas  esse não pode circunscrevê-la. É logicamente possível contá-las, mas somente  uma a uma. Sua posição está dominada pela função que escreve que não há uma que  represente o dizer que proíbe –  – proposição  existencial negativa. Não há equivalente, na coleção das mulheres, ao menos-um  cuja exceção instaure um limite unificador que as contenha como ao conjunto dos  homens. Nenhum significante funda um universal de A mulher. Como imagem do que  se poderia situar nesta ausência, Maleval cita Miller em A natureza dos  Semblantes ( 1991-92/2001, p. 75), exemplificando esta situação com  a imagem da Virgem Maria. O mistério da Virgem, virgem e mãe, serve para  absolutizar o mistério da mulher como Outra, não como falo centrada: representa  o mistério absoluto fora do falo. Por isso, ela participa do Divino. A mulher  que seria toda, de acordo com Lacan no Seminário O Sinthoma (1975-76, p. 3), é  outro nome de Deus.  
                          . A introdução de uma distinção clara entre duas modalidades do gozo, no  ensino de Lacan, contemporâneas às fórmulas da sexuação, abriu a possibilidade  de um avanço importante na investigação da psicose. O psicótico, como A  mulher, conhece um  gozo Outro, que pertence ao corpo, mas, à diferença do feminino que conta com o  falo como relé. Caracteriza-se por não estar regulado pelo gozo fálico. Existe  proeminência do gozo fálico com relação aos outros gozos, porque é, por  excelência, aquele que pode se negativizar, fazer exceção  . Não é essa operação que vamos encontrar na forclusão. Ela  será anotada como  . Na melancolia os psicóticos se encontram confrontados à  pura cultura de pulsão de morte, uma dor que os coloca deitados sem chance nem  de dormir, os esquizofrênicos, como nossa mais antiga cliente, à voluptuosidades  indizíveis e estranhas. Este gozo que elude o simbólico, chamado Outro gozo, é diverso,  inapreensível, não responde a nenhum princípio unificador. Seu aparecimento se manifesta  no psicótico como correlativo do que Lacan chama empuxo-à-mulher. Em  nossa clínica com psicóticos é freqüentíssimo o aparecimento de sensações ou  intuições de se estar transformando em mulher, diferente de um desejo ou gozo  homossexual. Esse gozo estranho e enigmático suscita nos delirantes temáticas  transexuais ou mesmo esse Outro nome de Deus que é a Virgem ou uma Deusa.  
                          . Se Rodrigo olhasse muito para as pernas das colegas do curso de inglês  elas poderiam considerá-lo devasso. Se voltasse o rosto para a direita,  encontrando o rosto do professor, ele poderia pensar que seu olhar era lúbrico.  Acontecia assim, infinitamente, em todas as situações em que estava confrontado  ao laço social (sexual), condição sine qua non de articulação da  metáfora paterna e do falo simbólico que nele faltava. Tudo acontecia em  silêncio, diálogo interior que vinha relatar nas sessões. Quando entrava em um  ônibus, procurava uma haste para sustentar seu olhar. Se havia por perto uma  mulher, ela o atraia. Então evitava essa atração (tração, ser irresistivelmente  puxado para) olhando para a outra haste, e ali existia um homem (e nos  coletivos existem muitos homens e mulheres). Perigo era ser descoberto como desejante.  Tinha dificuldade óbvia de se posicionar na partilha dos sexos. Em continuação,  lançava o olhar mais longe, nos postes, mas também ali sofria a mesma  ambivalência, ad infinitum. Dispensável dizer que não se mantinha em  qualquer atividade coletiva e saía pela cidade raríssimas vezes. 
                          . A Escola Européia de Psicanálise dedicou seu seminário de 94/96 ao tema Do  empuxo-à-mulher. Geneviève Morel diz no início do seminário o seguinte: 
                          
                            
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                              “na psicose, o ponto Pai,  , não  existe; escreve-se,  não  existe este ponto de exceção à função paterna ou ela é forcluída. O resultado é  como se a função, ela mesma, estivesse forcluída, em cada ponto, porque a função   não é possível senão pela existência deste  ponto. O psicótico pode percorrer todos os pontos mas não encontrará o Pai,  salvo no infinito como Deus, A mulher. O sujeito acompanha este percurso  forçado, suportado pelo seu gozo. Este é o sentido do empuxo-à-mulher”.   | 
                             
                           
                          . Assim, aconteceu paradigmaticamente com Schreber e ele disse não poder  ser suplantado por mulher alguma. O sentido desta afirmação ele ser A Mulher  das mulheres, gozando femininamente mais que qualquer mulher. Se o verificamos,  ele comparou seu gozo com o de cada mulher, uma a uma no presente e no futuro,  o gozo seria infinito... O sujeito se encontra assim no fim desta verificação  assintótica, ele mesmo, encarnando a mulher.  
                          . Pierre-Gilles Guèguen, no mesmo Seminário Do empuxo-à-mulher, nos  lembra que “o empuxo-à-mulher conhece manifestações diversas que merecem ser  mais nitidamente distinguidas do que fazemos ordinariamente. Podemos observar  todos os degraus da evolução de uma psicose desencadeada, desde as formas mais acabadas  do delírio, como em Schreber, até os estados esquizofrênicos” (p. 59), como  nosso paciente Rodrigo. 
                          . Na clínica da psicose, segundo Maleval, apesar da forclusão do  Nome-do-Pai, constata-se freqüentemente a presença incômoda de um Pai  todopoderoso, que, como no mito de Totem e Tabu, capitaliza o gozo. O fenômeno  de sua emergência é captado com mais facilidade a posteriori, depois da  distinção de gozo fálico e gozo do Outro. Se o Pai Real se impõe cruamente como  um perseguidor que goza sem limites do sujeito psicótico, é porque a função simbólica  do Nome-do-Pai, instauradora do gozo fálico, está afetada por uma carência e, portanto,  é incapaz de evitar o encontro angustiante com o gozador obsceno.  
                          . Rodrigo sonha que estava enredado em uma cerca de arame farpado e sobre  uma haste, uma placa escrita: APLACA. Não entendeu o sentido do sonho, mesmo  porque não há metáfora paterna para interpretá-lo, só a escritura com todas as  letras. 
                          
                            
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                              La  clínica de la transferencia psicótica se vuelve más inteligible desde este  nuevo punto de vista: al principio sólo mencionada al pasar, algunos años más  tarde – a propósito de Schreber – la tesis de la “erotomania mortificante” se  ve reforzada, incluso es elevada a la cualidad de un concepto principal. Dicha  tesis destaca la propensión del psicótico a situarse como un objeto entregado a  la malevolencia del Otro gozador. Subvierte la noción de “psicosis de  transferencia” vulgarizada pelos kleinianos. (MALEVAL, 2002, p. 122).   | 
                             
                           
                          . A  primeira vez que Luciana esteve comigo, vinha desalinhada, roupa de cetim lilás  apertando seu corpo. Louca por Zezinho. Havia saído com ele e num affair em  seu carro, Zezinho tocou um de seus buracos. Irrompeu-lhe louco amor que a fez  perseguir Zezinho por mais que este se fizesse de rogado. Para ele era apenas  uma aventura que os jovens nomeiam hoje de “ficar”. Para ela, o seu Almor (LACAN, 1972-73/1985, p. 105). Passa a seguir seus passos, telefonar-lhe em  horas as mais inoportunas, procurá-lo no trabalho aos gritos até ele ser  obrigado a sai da cidade, sem que ela fosse avisada. Começou um longo  tratamento que dura 16 anos, com esses amores desvairados, excessivos,  incontrolados em que não reconhece perda alguma e, quando os parceiros se  separam, cai em quadro de invasão imaginária com irrupção de A mulher: vê fetos  pelo chão, sente-se lésbica, toma inúmeros banhos e apresenta um sem fim de  sintomas corporais que, no passado, foram identificados como convulsões. A  erotomania tem essa dupla face: goze! e morra! sem chance para o sujeito, que  está com o objeto no bolso, sem condição de se separar dele. Aqui, as  referências lacanianas passam para além do significante à orientação uma  orientação quanto a temperança do gozo do Outro e do Outro gozo. No caso de  Luciana esta temperança se faz manejando os medicamentos, a palavra suave,  exercendo o secretariado atento. Uma equipe coordenada por nós, que vai fazer  diferença do sintoma no corpo para a medicina, para a psiquiatria e para a  psicanálise no tratamento de seus inúmeros e variáveis sintomas. São balizas  fundamentais. Um coletivo expressivo de profissionais, vetorizado pela ética da  psicanálise, a acolhe. Luciana nos ensina todos os dias o céu e o inferno do  gozo do Outro e do Outro gozo, enigmáticos e estranhos a nós, neuróticos.  Ensina-nos também que os analistas não devem trabalhar sozinhos e que o  concurso de clínicos e outros profissionais sensíveis à causa psicanalítica é  fundamental na direção da cura de um caso de tal complexidade. Esclarecemos que  à solidão da intenção não pode corresponder a da extensão, principalmente num  caso como esse. Não há como conduzir a cura de um psicótico situando sua  direção na referência à neurose. A formação do psicanalista deve incluir o que  os psicóticos ensinam a cada analista e à própria psicanálise, como pôde aprender  Lacan.  
                                                      .  Lacan, na Questão Preliminar..., argumenta que, ao abrir-se no campo do  imaginário a hiância que corresponde à falta da metáfora simbólica, a saída da  sexualidade de Schreber só poderia se resolver na efetivação da emasculação.  Objeto de horror para o sujeito, inicialmente, depois aceito como compromisso  razoável, e, desde então, decisão irreversível. O órgão sexual passa a uma  reabsorção pacífica nas entranhas do sujeito porque ele não sofreu castração  real no complexo do mesmo nome, logo, Lacan sugere o termo eviração como tendo  o mesmo sentido que emasculação. (LACAN: (1957-58/1998 p. 570/571[564]).  
                          
                            
                              .  A clínica da transferência psicótica se torna mais inteligível deste  novo ponto de vista: de princípio só mencionado de passagem, alguns anos mais  tarde – a propósito de Schreber – a tese da “erotomania mortificante” se vê  reforçada, inclusive é elevada à qualidade de um conceito principal. Dita tese  destaca a propensão do psicótico de situar-se como um objeto entregue à  malevolência do Outro gozador. Subverte a noção de “psicose de transferência”  vulgarizada pelos kleinianos. (Trad. do autor).  
                             
                            
                              .  Almor – Lacan conjuga o verbo aimer como âme, condensando  amor e alma no neologismo almor.  
                             
                           
                          REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: 
                          FREUD. S. (1911/1976) Notas psicanalíticas sobre um relato autobiográfico de um caso de paranóia (dementia paranoides. Rio de Janeiro: Imago, Editora Ltda., 1976. (Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud), V. XII. 
                            GOYATÁ, F. J. R. (2003) Wolf Silva, consumidor implacável. Belo Horizonte, IX Jornada da EBP – MG. out. de 2003. 
                            GUÉGUEN, Pierre-Gilles. “Une allusion surprenante”. In: Cercle Franco-Hellène de Paris. Figures du pousse-à-la-femme. École Européenne de Psychanalyse. Seminaire 94-96. (Coletânea de Textos. Cópia mímeo). 
                            LACAN, J. (1972-73/1985) Seminário 20 – mais, ainda. 2a. ed. Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985. 
                            MALEVAL, J-C. (2002) La forclusión del Nombre del Padre: El concepto y su clínica. Buenos Aires: Paidós. 
                            MILLER, J-A. (2000) “Os seis paradigmas do gozo”. Opção Lacaniana – Revista Brasileira Internacional de Psicanálise. No. 27/27. São Paulo: abr. 2000. p. 87-105. 
                            MOREL, Geneviève. “Le Pousse-à-la-femme: problématique. Compte rendu du séminaire”. In: Cercle Franco-Hellène de Paris. Figures du pousse-à-la-femme. École Européenne de Psychanalyse. Seminaire 94-96. (Coletânea de Textos – Cópia mimeo.) 
                            SCHREBER, Daniel Paul. (1985)  Memórias de um doente dos nervos. (1842–1911). Rio de Janeiro: Edições Graal (2a. Edição), 1985.  |