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                        Resumo: Trata-se de um trabalho de pesquisa no texto  freudiano em alemão sobre a palavra traço. Pode-se constatar que existem  três palavras diferentes (Zeichen, Spur e Zug) que são traduzidas  para as línguas latinas e inglés por uma só, perdendo-se com isto  as importantes difetrenças conceituais. A partir desta constatação  pode-se estabelecer um novo aporte teórico à clínica das perversões a partir  do traço de perversão. 
                           Palavras-chave: Fantasia, Inconsciente, Traço, Perversão 
                          Abstract :This text is a work of research in  the freudian text in germany of the word trace. It coulf be verified that  there are three diferent words (Zeichen, Spur e Zug) thar can only  be translated for one word to the latin and english languages. With this,  important conceptual diferences are lost. This finding made possible the  construction of a new teoretical approach to the clinic of perversions  taking into consideretion the trace of perversion.  
                            Key-words: Phantasy, Unconscious, Trace, Perveversion                           
                          
                            
                              A Clínica 
                                 
                               . 
                              Quando João me procurou pela  primeira vez, deixou bem claro porque o fazia: «Quero dar um jeito para evitar  que minha mulher me deixe». Logo em seguida ele esclareceu do que se tratava:  «Minha ejaculação precoce e minha compulsão para me masturbar em situações  estranhas estão me prejudicando».  
                                João tinha, à época desta primeira  entrevista, mais de quarenta anos de idade, uma posição sócio-econômica boa e  uma família. No entanto, mais uma vez, tudo isto estava sendo ameaçado pelo  seu comportamento "incontrolável". 
                                 
                                À medida que as  entrevistas foram se sucedendo e a história de João foi sendo construída,  alguns pontos puderam ser destacados: nascido de família pobre, foi filho caçula  de uma prole não muito numerosa. Desde cedo sofreu muito com as brutalidades de  seu pai, nos raros momentos em que este estava presente em casa. Isto fez com  que se "achegasse" muito à mãe, com quem sempre manteve uma relação  muito próxima. Talvez por isso tinha muita raiva quando percebia as  "saídas" de sua mãe para encontros amorosos. 
                                Data desta época o  relato feito por sua mãe, nos raros momentos em que demonstrava alguma ternura  por seu pai: «Quando o conheci ele estava lindo, todo vestido de branco,  parado, olhando fixamente para uma imagem de Nossa Senhora» (talvez seja  importante assinalar aqui que João tem uma profissão que lhe exige andar  vestido de branco todo o tempo). 
                                 
                                A vida sexual de João  começou muito cedo e de forma intensa. De suas lembranças, a que mais o  incomoda, e que custou um bom tempo até que pudesse ser relatada, dizia  respeito aos momentos em que aguardava sua mãe trocar de roupa para observá-la,  através de uma brecha na cortina que separava os cômodos da casa. Observando-a,  João se masturbava. 
                                Desde então João aderiu  à prática sistemática da masturbação, sempre procurando uma brecha (ele  denominou esta prática de "brechar") para olhar alguma mulher e, no  espaço de tempo entre ela ir e vir, passando pelo seu campo de visão, ele  "tinha" que atingir o orgasmo. Isto, conforme sua própria  interpretação, era a razão de sua ejaculação precoce. 
                                 
                                Com o passar do tempo,  esta prática foi se acentuando até começar a acontecer em lugares públicos  (ônibus, praia, local de trabalho) sempre sob a égide de um impulso  incontrolável. Diga-se de passagem que, apesar de João dizer que «sempre tomava  cuidado para não ser visto», foi expulso de seu trabalho por duas vezes, por  ter sido «apanhado em flagrante». Inclusive, recentemente, sua mulher o havia  "visto" se exibindo para a empregada doméstica e por isso estava com  receio de perdê-la. 
                                 
                                Apesar destes fatos da  clínica de João, aqui descritos, não serem suficientes para que possamos  definir um diagnóstico, posso dizer-lhes que se trata de um sujeito histérico  com traços de perversão bem definidos e que se sustentam no par "olhar -  ser olhado". 
                                 
                                O objetivo agora será  tratarmos, pontualmente, destes "impulsos" que escapam ao  "controle" e que demonstram uma incapacidade do sujeito de se  interpor, enquanto efeito, a esta vontade de gozo. Em outras palavras,  incapacidade de fazer existir um tempo para compreender entre o instante de  olhar e o momento de concluir. 
                              Mas, o que se passa  com esta estrutura que vai possibilitar esta "brecha"?
                              
                               Traço de Perversão     
                              Uma questão, mais do que  outras, se me apresenta neste ponto: o que é traço? Optei por começar com uma  pesquisa: como e em que contextos Freud utiliza a palavra traço em sua obra?  Trabalhando então com o texto original, em alemão, e cotejando-o com as  traduções em inglês e português, pude observar que em alemão existem pelo menos  três versões para a palavra traço: Zeichen,  Zug e Spur. E, como não podia  deixar de acontecer, cada uma delas nos remete a recortes conceituais  diferentes que, infelizmente, se perdem quando da tradução por uma única  palavra em outras línguas. 
                                 
                                Com o intuito de dar uma  sequência ao trabalho, escolhi algumas passagens da obra de Freud onde  encontramos cada uma destas palavras. Penso que são passagens representativas e  que poderão clarear suas respectivas conceituações. 
                                Encontramos a palavra Zeichen (traço, sinal, distintivo,  insígnia, indício) principalmente no "Projeto para uma psicologia  científica", "Carta 52 da correspondência a Fliess" e  "Interpretação dos sonhos". Tomemos como exemplo a "Carta  52" e vejamos como Freud se dirige a Fliess: «[...] Você sabe, eu trabalho  com a suposição de que nosso mecanismo psíquico aparece através de camada sobre  camada: o material presente na forma de traços de memória (Erinnerungsspuren) sofre de tempos em tempos um rearranjo, uma  transcrição após novas relações. O essencialmente novo em minha teoria é a  afirmação de que a memória se apresenta não de uma forma, mas de várias formas,  em diferentes maneiras de traços (indícios: Zeichen)[...]»1. 
                              Mais adiante, na mesma  "Carta 52", quando está a definir o que seja cada uma das  "camadas", Freud vai nos dizer que uma delas é a WZ (Wahrnehmungszeichen) - traços de  percepção - e que consiste no «primeiro registro da percepção[...]»2.  Sem muito me alongar em citações, posso dizer-lhes que em todas as outras  ocasiões, por mim analisadas, em que surge a palavra Zeichen, ela vem sempre com o sentido de indicações, insígnias, ou  seja, ligada à percepção. Posso inclusive associá-la à palavra Vorstellung (apresentação), tão comum  nos escritos freudianos posteriores. 
                                Quanto à palavra Zug (traço, sulco, puxada, puxão), vamos  encontrá-la principalmente em duas passagens: 
                               1 FREUD S., "Carta 52", Obras Completas, Edição Standard Brasileira, vol. I, Rio de Janeiro,  Imago, 1969, p. 254; Aus den Anfängen der  Psychoanalysis, London, Imago Publishing - CO, LTD, 1950, p. 185; Standard Edition of the Complete  Psychological Works, vol. I, London,  The Hogarth Press, 1973, p. 233. 
                                2FREUD S., ibid. 
                              
                                
                                  1. No texto "Uma  criança é batida", primeiro parágrafo da segunda parte: «Uma fantasia deste  tipo, proveniente talvez de causas acidentais na infância e mantida para o  propósito de satisfação auto-erótica pode, à luz de nosso conhecimento  presente, somente ser vista como um traço primário (primaren Zug) de perversão»3. 
                                     
                                    2. Em "Psicologia  das massas e análise do eu", parte VII - A identificação. Esta citação  foi a mesma utilizada por Lacan em seu seminário "A identificação",  para trabalhar o conceito de traço unário: «Deve também nos surpreender que em  ambos os casos a identificação seja parcial e extremamente limitada (höscht beschränkte), tomando emprestado  apenas um traço único (einzigen Zug)  da pessoa que é seu objeto»4. 
                                     
                                    Talvez possamos  encontrar outras passagens em que Freud utilize a palavra Zug; a mim, no entanto, não foi possível localizá-las nos textos  que trabalhei. Portanto penso que posso dizer-lhes que o conceito de Zug está fundamentalmente associado aos  conceitos de primário e unário. Para dar um passo a mais posso dizer-lhes,  também, que o einziger Zug tem como  consequência lógica a Bejahung primordial. 
                                  Enfim, examinemos a  palavra  Spur (traço, vestígio, pista,  rastro). Esta, talvez, seja a palavra alemã, para traço, que Freud mais utiliza  ao longo de sua obra. Dois textos, no entanto, são de capital importância para  apreendermos o conceito de  Spur em  Freud: "Carta 52" e "Notas sobre o bloco mágico". Na  "Carta 52", por exemplo, quando Freud nos descreve a camada W ( Wahrnehmung) ele é bastante claro ao  dizer que se trata de neurônios nos quais "nenhum traço" ( kein Spur) do que acontece permanece5.  Só vamos ver surgir os traços ( Spuren)  quando
                                   
                                    
                                      3 FREUD S., "Uma criança é espancada", Obras Completas, op. cit. vol. XVII, p. 228; Studienausgaben,  vol. VII,  Frankfurt, Fischer Taschenbuch Verlag, 1982, p. 233; Standard Edition of the Complete Psychological Works, op. cit. vol. XVII, p. 181. 
                                        4 FREUD S., "Psicologia das massas e análise do  eu", Obras Completas, op. cit. vol. XVII,  p. 135; Studienausgaben, op. cit. vol. IX, pág. 100; Standard Edition of the Complete  Psychological Works, op. cit. vol. XVII,  p. 107.     
                                        5 Vide nota 1  
                                       
                                    
                                      do segundo registro (UB  - Unbewusst): «[...] traços do  Inconsciente (UB Spuren) são algo  equivalentes a lembranças conceituais (Begriffserinnerungen)[...]»6. 
                                        Posso lembrar-lhes,  neste ponto, que estes UB Spuren são  o que Freud vai chamar, mais tarde, de Vorstellungsreprasentanz que é, como nos diz Lacan «o significante que é recalcado, pois não há outro  sentido a dar nesses textos a esta palavra»7. 
                                        No entanto, é no texto  "Notas sobre o bloco mágico" que Freud vai trabalhar exaustivamente o  conceito de Spur que estará sempre  ligado ao conceito de memória (Erinnerung)  e permanência (Dauer). 
                                        A partir do que lhes  trouxe até aqui, uma hipótese surge: mais do que simples diferenças de  traduções ou de grafia, cada uma destas palavras utilizadas por Freud apontam  um recorte conceitual preciso e nos ajudam a pensar, não só os vários  "tempos" do sujeito, como também questões clínicas como "traços  de perversão". 
                                        Na "Carta 52",  nosso ponto de partida, Freud nos fornece o seguinte esquema: 
                                      W  ------ WZ ------ UB ------ VB ------ Bews 
                                                 I         II        III 
                                      «W (Wahrnehmung) - São neurônios nos quais a percepção começa, aos  quais a consciência se liga. Neles, nenhum traço (kein Spur) do que acontece, permanece[...]». 
                                        «WZ (Wahrnehmungszeichen) é o primeiro  registro (Niederschrift) da  percepção. Sua conscientização é totalmente incapaz de se fazer (der Bewusstsein  ganz unfahig) e são organizados de acordo com associações por  simultaneidade (ach Gleichzeitigkeitsassoziation  gefüt)». 
                                      
                                        
                                          6 Vide nota 1.  
                                            7 LACAN J., "Sur la  théorie du symbolisme d'Ernest Jones", Écrits,  Paris, Seuil, 1966, p. 714.
                                          
                                          
                                            
                                              
                                                
                                                «UB (Unbewusst) - É o segundo registro (Niederschrift); é ordenado conforme  algo assim como relacionamento causal. Os traços (Spuren) de UB são equivalentes a algo assim como lembranças  conceituais (Begriffserinnerung) e,  da mesma forma, inacessíveis à consciência». 
                                                  «VB (Vorbewusst) - é a terceira transcrição (Umschrift), ligada à representação de  palavra (Wortvorstellung), e é aquilo  que se refere ao nosso eu oficial»8. 
                                                   
                                                  No desenvolvimento que  Freud faz do esquema da "Carta 52", ele utiliza de maneira bastante  clara os conceitos Zeichen e Spur. Será possível, neste ponto,  introduzir no esquema da "Carta 52" o conceito de Zug a partir do que conhecemos da obra posterior de Freud e dos  desenvolvimentos lacanianos? 
                                                  Com toda a ousadia que me é  permitida numa situação como esta, eu introduzo o conceito Zug, mais especificamente, einziger Zug, entre as camadas WZ e UB: 
                                                W ------ WZ ------ einziger Zug ------ UB ------ VB ------ Bews 
                                                Com o desejo de  substanciar teoricamente o que acabo de propor, lanço mão do esquema R, assim  como Lacan o desenvolve no seu texto "Questão preliminar a todo tratamento  possível da psicose"9. 
                                                  
                                                  Esquema R 10 
                                                
                                                
                                                   
                                                    8 Vide nota 1.  
                                                      9 LACAN J., "D'une  question preliminaire à tout traitement possible de la psychose", op. cit. p. 553 
                                                      10 Lacan,,J. Questão Preliminar a Todo Tratamento Possível  da Psicose, in Escrito.                    .  
                                                  
                                                    O esquema R é um  desdobramento do esquema L, primeiramente desenhado no seminário sobre "A  carta roubada". Ele é dividido em três partes: 
                                                       
                                                      1. O triângulo  imaginário. 
                                                       
                                                      2. A faixa do real  (leia-se realidade), faixa esta que, uma vez extraído o objeto a, vai sofrer uma meia torção,  transformando-se em uma banda de Moebius para nos dizer do sujeito e do  pouco-de-realidade. 
                                                       
                                                      3. O triângulo do  simbólico. 
                                                      Em cada um dos seus  vértices Lacan vai instalar uma letra, designando cada uma, o grande A no  caminho do sujeito. Estas letras também nos auxiliam a matemizar as três  posições do analista na direção da cura. São elas: M - no instante de olhar, a  mãe enquanto das Ding; I - no tempo  para compreender, o ideal do eu enquanto matriz simbólica e, enfim, em P - o  momento de concluir pelo Nome-do-Pai enquanto representante da lei. No que diz  respeito ao caminho do sujeito, posso localizar a privação do sujeito no real  em M, onde vai faltar um objeto simbólico no real; a frustração na posição I,  onde falta um objeto real no imaginário especular; e finalmente a castração em  P, instalando-se definitivamente a falta no simbólico de um objeto imaginário. 
                                                       
                                                      Neste ponto uma  articulação entre o esquema freudiano e o lacaniano me parece possível: M  corresponderia às camadas W e WZ, estas camadas iniciais do aparelho psíquico  freudiano da "Carta 52". Este momento onde existem apenas e tão  somente percepções, ou seja, nem sujeito nem objeto a serem percebidos.  Existem apenas percepções que, num certo momento vão se constituir em traços,  insígnias, formando o que Freud denominou no "Projeto para uma psicologia  científica" de "o complexo do semelhante" (Der Nebenmensch Komplex). 
                                                       
                                                      O importante aqui fica  por conta do fato de que não se distingue ainda a qual destes traços de  percepção vai se ligar todo o processo de identificação que irá se constituir  no nome próprio, a partir do qual o sujeito advirá para nomear todas as coisas  que vão fazer existir o pouco-de-realidade de seu mundo ficcional. 
                                                       
                                                      Entre as camadas WZ e  UB, no esquema freudiano, e entre M e I, no esquema lacaniano, faço incidir a  presença inaugurante do traço unário que «é aquilo que apaga A Coisa», como  nos diz um autor anônimo em Scilicet n°  2/3, «ele aí apaga tudo, exceto este um que ela foi, e jamais será substituída;  Lacan dá esta fórmula: Wo es war, da  durch das eins werde ich - aí onde era (A Coisa), aí pelo um advirei eu, e  é o traço unário que faz aparecer o sujeito como aquele que conta. Mas o  primeiro passo do sujeito não pode ser articulado a não ser como a introdução  do nada como tal, no sentido do Nihil  Negativum de Kant, objeto vazio sem conceito (Leere Gegenstand Ohne Begriff)[...]»11. 
                                                      Este é o começo do  sujeito: uma vez instalado o traço unário, não vemos aparecer, como se pensa  por aí, um «isto-bom que é incluido no eu e um isto-mau que é expulso do eu,  mas parece que estamos antes autorizados a pensar que não há dois  "istos", mas sim um e que o sujeito incorpora, e o que se encontra é  que, neste momento, algo se perde (dechoit)  desta incorporação[...]»12. 
                                                      Assim com o traço unário  instala-se o que Freud denominou de segundo registro, uma vez que o ordenamento  aqui já se faz em função de um relacionamento causal, produzindo lembranças  conceituais. É o momento em que um «eu ideal é a imagem que se fixa desde o  ponto em que o sujeito se detém como ideal do eu [...] Na captura que experimenta  de sua natureza imaginária, mascara sua duplicidade, a saber, que a consciência  em que se assegura de uma existência inegável não é em absoluto imanente, mas  sim transcendente posto que se apóia no traço unário»13.  Ou seja, é no Outro que ele vai existir, na medida em que, dependente  fundamentalmente de seu amor, «quer dizer, pelo desejo de seu desejo, se  identifica com o objeto imaginado desse desejo enquanto que a mãe mesma o  simboliza no falo»14. 
                                                    
                                                       
                                                        11Scilicet, n°2/3, Paris, Seuil, 1970, p. 124.  
                                                          12 Intervenção de A. Didier-Weil no seminário de Lacan,  em 05/05/79.  
                                                          13 LACAN J.,  "Subversion du sujet et dialectique du désir dans l'inconscient  freudien", op. cit. p. 809. 
                                                          14 LACAN J.,  "D'une question preliminaire à tout traitement possible de la  psychose", op. cit. p. 554.  
                                                      
                                                        Passagem fundamental  acontece neste ponto quando, de acordo com o esquema da "Carta 52", a  terceira transcrição é possível, ligando lembranças conceituais (Begriffserinnerungen) a representações  de palavras (Wortvorstellungen). É o  momento de instalação da lei, quando vai-se colocar em relevo a duplicidade que  a imagem do eu ideal tentava mascarar. Com isto precipita-se o ideal do eu como  herdeiro deste momento que se resolve na separação. Em outras palavras, é a  entrada do significante fálico que vem ordenar, estabelecer uma seqüência e um  tempo de espera para o que só visava o imediato do gozo sem limites. 
                                                          E assim, num só-depois,  poderemos observar a evolução que os esquemas apontam em sua dimensão  cronológica. É a série que, começando no universo perceptivo das imagens  ideográficas (Zeichen) vê eleger-se  um traço unário (einziger Zug), um  «traço distintivo, traço exatamente tanto mais distintivo quanto mais está  apagado tudo que o distingue, salvo ser um traço, acentuado o fato de que  quanto mais parecido, mais funciona, não digo como signo, mas sim suporte da  diferença[...]»15que,  ao constituir-se em letra, vai tornar-se o que sustenta materialmente o  significante enquanto traço de memória (Erinnerungsspur). 
                                                          Sendo, portanto, recortes  conceituais precisos, quando falamos em "traços de perversão", de  qual "traço" se trata: Zeichen, Zug ou Spur? 
                                                          Freud, no texto "O  problema econômico do masoquismo" nos diz: «A castração, ou seu  substituto, a cegueira, deixam, com freqüência, um traço negativo (negative Spur) nas fantasias (masoquistas),  pois nenhum dano deve ocorrer precisamente aos genitais ou aos olhos»16.  Seria possível interpretar esta frase de Freud, no que diz respeito ao traço  negativo, como um traço que, uma vez instalado, foi negativado? (Ou, quem sabe,  desmentido?) 
                                                        Encontro em outro  texto de Freud subsídio para tentar responder esta questão. É na "Carta  52", esta inesgotável fonte teórica: «Uma falha na tradução, isto é o que  sechama, clinicamente, recalque [...].  Dentro de uma mesma fase psíquica e entre os registros da mesma espécie,  forma-se uma defesa normal devida à produção de desprazer. Já a defesa  patológica somente ocorre contra um traço de memória ( Erinnerungsspur) de uma fase anterior que não foi traduzido» 17.
                                                         
                                                        Partindo daí, penso  poder dizer que um traço negativo é exatamente um traço que, tendo chegado a se  constituir em mais um na cadeia, "regride" ao que passa a ser um  traço ( Zug) que, assim, adquire a  função da qual não sofreu tradução, ou seja, passa a não se submeter à ação  ordenadora do significante falo, exigindo, portanto, a ação de mecanismos de  defesa patológicos. «Uma fantasia deste tipo (perversa), proveniente talvez de  causas acidentais na infância e mantida para o propósito de satisfação  auto-erótica pode, à luz de nosso conhecimento presente, somente ser vista como  um traço primário ( primären Zug) de  perversão» 18.
                                                         
                                                        Coloco-lhes então minha  proposta: localizar a ação da  Verleugnung,  este mecanismo de defesa patológico que tenta dar conta do que não sofreu  tradução entre as camadas WZ e UB no esquema modificado da "Carta 52"  ou, no esquema lacaniano, entre o I e o P (esquema R). Agindo neste ponto, a  Verleugnung (desmentido) negativa a ação  legislativa do significante falo, deixando sobreviver, sem tradução um traço  primário ( primären Zug) que se faz o  único, neste momento, a ditar as leis: é a vontade de gozo que surge na brecha  aberta da tela protetora da fantasia fundamental. É a marca estrutural que  diferencia um traço de perversão de um  acting-out,  que se caracteriza por ser um signo cênico transitório em seu endereçamento a  um outro que não está. Se diferencia também dos traços da fantasia, estes  significantes, que surgem no percurso de uma análise, a partir dos quais  pode-se, eventualmente, construir-se a fantasia fundamental.
                                                        
                                                          
                                                       
                                                    
                                                       15 LACAN J., "A identificação", seminário  inédito, aula de 13/12/61. 
                                                        16 FREUD S., "O prolema econômico do  masoquismo", Obras Completas, op.  cit. vol. XIX, p. 203; Studienausgaben, op. cit. vol. III, p. 346; Standard Edition of the Complete  Psychological Works, op. cit. vol. XIX, p. 162. 
                                                        17 FREUD S., "Carta 52", Obras Completas, op. cit. vol. I, p. 256; Aus den Anfangen der Psychoanalysis, op. cit. p. 187; Standard  Edition of the Complete Psychological Works, op. cit. vol. I, p. 235. 
                                                        18Vide nota 3.  
                                                      
                                                        
                                                          
                                                              
                                                            
                                                              
                                                              Conclusão 
                                                              Todo este percurso  teórico, motivado pela clínica de João, assim como os resultados apresentados  ao longo de um trabalho de mais ou menos três anos, possibilita a seguinte  conclusão: 
                                                                O relato que a mãe de  João lhe fez do momento em que conheceu seu pai, assim como a  "brecha" na cortina, propiciando a visão do corpo nu, favoreceram à  fixação de uma imagem que, no a posteriori,  desencadeou uma prática masturbatória que se sustentou como "satisfação  auto-erótica", uma pulsão que se antecipou à maturação e desmentiu a ação  fálica. A falta de um pai real foi, talvez, o fator preponderante desta  fixação. 
                                                                Durante todo o tratamento analítico,  objetivou-se a construção de um significante que pudesse fazer as vezes do que  não pôde ser traduzido e que permaneceu como traço. Desta forma a brecha que se  instalou na tela protetora da fantasia pode ser, de alguma maneira reparada e,  hoje, João pôde colocar um tempo para compreender, um tempo de espera, um  intervalo entre o instante de olhar e o momento de concluir. 
                                                              Referências Bibliográficas 
                                                              FREUD S., "Carta 52", Obras Completas, Edição Standard  Brasileira, vol. I, Rio de Janeiro, Imago, 1969, p. 254; Aus den Anfängen der Psychoanalysis,  London, Imago Publishing - CO, LTD, 1950, p. 185; Standard Edition of the Complete Psychological Works, vol. I, London,  The Hogarth Press, 1973, p. 233. 
                                                                FREUD S., "Carta 52", Obras Completas, op. cit. vol. I,  p. 256; Aus den Anfangen der  Psychoanalysis, op. cit. p. 187; Standard Edition of the Complete  Psychological Works, op. cit. vol. I, p. 235. 
                                                                FREUD S., "O prolema econômico  do masoquismo", Obras Completas, op.  cit. vol. XIX, p. 203; Studienausgaben, op. cit. vol. III, p. 346; Standard Edition of the Complete  Psychological Works, op. cit. vol. XIX, p. 162. 
                                                                FREUD S., "Psicologia das massas  e análise do eu", Obras Completas,  op. cit. vol. XVII, p. 135; Studienausgaben, op. cit. vol. IX, pág. 100; Standard Edition of the Complete  Psychological Works, op. cit. vol. XVII, p. 107.  
                                                                FREUD  S., "Uma criança é espancada", Obras  Completas, op. cit. vol. XVII, p. 228; Studienausgaben,  vol. VII, Frankfurt,  Fischer Taschenbuch Verlag, 1982, p. 233; Standard  Edition of the Complete Psychological Works, op. cit. vol. XVII, p. 181. 
                                                                LACAN  J., "A identificação", seminário inédito, aula de 13/12/61. 
                                                                LACAN J., "D'une question preliminaire à tout  traitement possible de la psychose", op.  cit. p. 553. 
                                                                LACAN J., "D'une question preliminaire à tout  traitement possible de la psychose", op.  cit. p. 554. 
                                                                LACAN J., "Subversion du sujet et dialectique du  désir dans l'inconscient freudien", op.  cit. p. 809. 
                                                                LACAN J., "Sur la théorie du symbolisme  d'Ernest Jones", Écrits, Paris,  Seuil, 1966, p. 714. 
                                                              Recebido em Junho de  2010 
                                                                Aceito em Agosto de  201 
                                                                 
                                                               
                                                             
                                                          
                                                           
                                                         
                                                      
                                                       
                                                     
                                                   
                                                 
                                               
                                             
                                           
                                         
                                       
                                     
                                     
                             
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