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                        Resumo: Este artigo discute a experiência de David Rosenhan,  publicada na revista Science em 1973, a partir da qual  demonstrou-se que os diagnósticos psiquiátricos possuem pouca confiabilidade e  dizem mais sobre o ambiente em que os pacientes foram diagnosticados, que sobre  eles mesmos. A partir disso, o autor expõe uma série de medidas tomadas pela  Associação Psiquiátrica Americana (APA) para reafirmar a afiliação da  psiquiatria à medicina científica, como a elaboração de princípios a partir dos  ensinamentos de Kraepelin para reordenar a prática psiquiátrica e a  reformulação dos critérios diagnósticos do DSM-II, segundo inspiração em  protocolos de pesquisa de campo. Apesar desses remanejamentos internos à  classificação e das propostas para aumento da confiabilidade dos diagnósticos  psiquiátricos, questões importantes do ponto de vista científico, como a  questão da validade, não foram resolvidas. 
                          Palavras-chave: Diagnóstico, psicanálise, DSM, psiquiatria,  validade 
                           Abstract: This article discusses the experience  of David Rosenhan, published in the magazine Science in 1973. It showed that  the psychiatric diagnoses have little reliability and speak more about the  environment in which the patients were diagnosed rather than themselves.  Taking this into account, the author exposes  a series of measures taken by the American Psychiatric Association (APA) to  reaffirm the affiliation of  psychiatry  to scientific medicine with the elaboration of principles taken from the teachings  of Kraepelin in order to reorganize the psychiatric practice and the  reformulation of the criteria of diagnoses of DSM-II, based on protocols of  field work.  In spite of these internal  reorganization of the classification and the proposals to increase the  reliability of the psychiatric diagnoses, important issues from the scientific  viewpoint, such as the validity, were not resolved.  
                          Keywords:   Diagnosis, psychoanalysis, DSM, psychiatry, validity
                          
                            
                              
                                  
                                1) O experimento de David Rosenhan
                                Na década de sessenta, as relações  entre psicanálise e psiquiatria achavam-se desgastadas. Os psiquiatras  consideravam que a psicanálise não oferecia eficácia além de ser uma teoria que  postulava uma etiologia psicogênica, mais afrouxava que fortalecia os laços com  a medicina científica. O assunto seria retomado em 1985  por Spitzer e Bayer em um relatório de 1985 onde defendiam que se  extirpasse a neurose da nomenclatura do DSM1 além de outros freudismos (KIRK & KUTCHINS, 1998, p. 140). 
                                   
                                  Além da presença de conceitos  psicanalíticos no DSM, eventos como o debate sobre a validade científica do  conceito de homossexualidade e a publicidade em torno da falta de  confiabilidade dos diagnósticos, abalariam a psiquiatria americana. Robert  Spitzer, nomeado presidente do Grupo de Trabalho sobre Nomenclatura e  Estatística da APA, em maio de 1974 (KIRK & KUTCHINS, 1988, p. 166),  enfrentaria, ainda na condição de defensor do DSM, os efeitos da divulgação de  uma pesquisa conduzida por David Rosenhan, professor emérito de psicologia e de  direito da Universidade de Stanford, na prestigiosa revista Science (ROSENHAN, 1973, pp. 250-258). 
                                   
                                  Rosenhan, psicólogo, empreendeu um  experimento em psicologia social considerado um dos mais importantes do século  XX. Sua pesquisa destinava-se a verificar até que ponto os diagnósticos  psiquiátricos baseados em categorias sindrômicas diziam mais sobre o ambiente e  o contexto em que se observam os pacientes que sobre os próprios pacientes  observados. Ele não pretendia negar a existência da doença mental nem do  sofrimento psíquico, mas questionar até que ponto as noções de normalidade e de  anormalidade dependiam de diagnósticos que não diziam a verdade sobre as  pessoas que os recebiam. Com isso, Rosenhan postulava que, assim como na teoria  estatística, em medicina há um tipo de viés que induz os médicos a dois tipos  de erro na atribuição de um diagnóstico. 
                                   
                                  O erro mais comum em medicina  denomina-se “erro de tipo 2”  e refere-se  à maior inclinação dos médicos em atribuir a alguém saudável um diagnóstico de  enfermidade (falso positivo, tipo  
                                   
                                  2), do que atribuir a alguém enfermo um  estado de boa saúde. Esse tipo de erro acontece devido à prudência médica,  porque é preferível se enganar e submeter a tratamento alguém que goze de boa  saúde, que dispensar alguém doente sem providenciar-lhe nenhum cuidado. É  melhor errar por precaução. 
                                
  
    1American Psychiatric Association:  Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders. 
   
 
Rosenhan alertava, entretanto, que as conseqüências de  um erro tipo 2 em psiquiatrianão são as mesmas para o paciente  que as de outra área médica, como a cardiologia ou a nefrologia. Doenças  fisiológicas não têm, geralmente, uma conotação pejorativa e não produzem, em  sua maioria, nenhum tipo de estigma social. A situação dos diagnósticos  psiquiátricos é bem diferente para o paciente, porque induzem a estigmas e são  geradores de preconceitos sobre a vida pessoal, no plano legal e social. 
   
  O experimento visava testar se  pessoas normais podiam ser identificadas em ambientes de tratamento para  alienados. Se assim fosse, normalidade e anormalidade seriam distintas e  discerníveis pela confiabilidade das categorias diagnósticas usadas nessas situações.  Porém, se a sanidade dos pseudopacientes não fosse descoberta, isso reforçaria  a tese de que os diagnósticos psiquiátricos dizem pouco sobre o paciente e mais  sobre o ambiente em que ele é submetido à observação. 
   
  Oito pseudopacientes, entre eles  Rosenhan, se apresentaram a hospitais psiquiátricos com alegação de ouvirem uma  voz que lhes dizia “vazio” ou “oco”. As vozes seriam do mesmo sexo do paciente.  A expressão do delírio, sugestiva da alucinação verbal, foi previamente  combinada pela equipe de pesquisa pelo fato de fazer referência a dilemas  existenciais, poder ser expressa sob a forma de um fenômeno clínico da psicose  e por não haver na psiquiatria nenhuma referência a nenhuma psicose ou  esquizofrenia existencial. Sete dos pseudopacientes foram admitidos com  diagnósticos de esquizofrenia e um com o de psicose depressiva. As equipes dos  hospitais não tiveram, em nenhum momento, conhecimento oficial do experimento.  Para o restante da entrevista, os pseudopacientes combinaram entre si que  forneceriam informações verídicas, pois estas informações poderiam influenciar  favoravelmente num diagnóstico de sanidade, já que as histórias retratavam  vidas comuns sem comportamentos considerados patológicos. 
   
  Uma vez internados, os  pseudopacientes voltaram a se comportar normalmente, e passaram explicitamente  a tomar notas sobre a conduta da equipe na relação com os internos. Passaram  também a dispensar a medicação recebida nos lavatórios o que comprovaram ser  uma prática comum entre os pacientes. Também era comum que os pacientes  verdadeiros identificassem a sanidade dos pesquisadores. 
   
  O tempo de internação em média foi  de dezenove dias, e os pseudopacientes receberam alta com o diagnóstico de  “esquizofrenia em remissão”. O termo “em remissão” observa Rosenhan, não significa  que os pacientes tenham sido necessariamente acompanhados. Indica que, uma vez  diagnosticados como esquizofrênicos os pseudopacientes ficaram marcados com um  rótulo e, já que receberiam alta, não poderiam receber outra classificação que  não essa. 
Rosenhan, logo após a realização  dessa pesquisa, empreendeu outra pesquisa visando verificar se a tendência dos  psiquiatras em classificar pessoas normais como loucas poderia ser revertida.  Ele acertou com um hospital de pesquisa e ensino que enviaria alguns  pseudopacientes para entrevista de internação, advertindo previamente as  equipes sobre os resultados da pesquisa anterior. Durante três meses, que foi o  prazo acordado entre Rosenhan e a direção do hospital, as equipes trabalharam  na expectativa de que pseudopacientes tentariam ser admitidos à internação.  Combinou-se que os psiquiatras usariam uma escala de 1 a 10 para aferir o nível  de certeza do profissional sobre se tinha a frente um pseudopaciente ou não. 
   
  Os resultados indicaram que cento  e noventa e tres pacientes foram avaliados e admitidos no hospital e todos da  equipe não só psiquiatras emitiram opiniões baseadas na classificação do  DSM-II. Quarenta e um pacientes foram indicados com alto grau de certeza como  pseudopacientes por pelo menos um membro da equipe. Vinte e três foram  considerados suspeitos por pelo menos um psiquiatra e dezenove pacientes também  o foram por pelo menos um membro da equipe e um psiquiatra. Após a apresentação  dos resultados, Rosenhan, convidado a dizer o verdadeiro número de  pseudopacientes que teria enviado às equipes, revelou não ter enviado nenhum.  
   
  O experimento confirmou a  existência da inclinação entre as equipes que usam a classificação oficial, a  designarem pessoas normais como insanas. O efeito somente poderia ser  revertido, argumentava Rosenhan, “quando a sagacidade na realização do  diagnóstico é alta” (ROSENHAN,1973, p. 4). Sagacidade é uma qualidade que se  adquire com a prática clínica. 
   
  Da amostragem apresentada, para os  dezenove pacientes sobre os quais coincidiram opiniões de um psiquiatra e de  outro membro da equipe, Rosenhan perguntava se essas pessoas eram realmente  “sãs” ou se a equipe, evitando o erro de tipo 2, não teria cometido o erro de  tipo 1 denominando loucos como sãos. Com isto, ele advertiu que um sistema de  classificação e diagnóstico em psiquiatria “que se rende tão facilmente a erros  desse tipo não deve ser um meio estritamente confiável” (ROSENHAN,1973, p. 4). 
2. Os Critérios Feighner
Como dissemos, Spitzer se  contrapôs à pesquisa empreendida por Rosenhan, logo após a revisão do DSM-II,  quando se preparava para assumir a coordenação dos trabalhos para elaboração do  DSM-III. Segundo Kirk & Kutchins (1998, P. 159), durante um simpósio do  qual participava para avaliar os resultados apresentados por Rosenhan, Spitzer  qualificou a pesquisa de pseudociência e argumentou que o diagnóstico  “esquizofrenia em remissão”, alegado na pesquisa, não era de comum utilização.  Apresentou dados coletados por ele mesmo em outros hospitais, buscando  demonstrar que os registros sobre as altas dos pacientes quase sempre mantinham  o diagnóstico de admissão. Desta exposição, concluiu que os psiquiatras dos  hospitais onde o experimento Rosenhan foi desenvolvido haviam percebido que  pseudopacientes eram pessoas normais e que o diagnóstico “em remissão”  significaria um estado de “boa saúde  mental camuflada” (KIRK & KUTCHINS, 1998, P. 162). 
   
  Na verdade, o debate reaberto por  Rosenhan sobre a confiabilidade dos diagnósticos do DSM-II indicou a Spitzer  que, se o problema era esse, a solução deveria ser buscada aí e não na  tentativa de apurar a validade dos conceitos. A falta de consenso entre os  psiquiatras sobre as categorias diagnósticas já era de conhecimento público, e  a resolução dessa questão sanaria de uma vez por todas as dúvidas sobre a  credibilidade da psiquiatria, seu estatuto de ciência e seu pertencimento à  medicina. Sustentava que esse problema somente poderia ser resolvido  estabelecendo critérios de inclusão e de exclusão para cada uma das categorias  do manual. Dessa maneira, o manual seria aprimorado em relação às descrições  vagas e generalizadas do DSM-II, que exigiam raciocínio em psicopatologia da  parte dos aplicadores. 
   
  Spitzer integrava um grupo de  pesquisadores composto por psicólogos e psiquiatras que ficou conhecido na  história da psiquiatria contemporânea como Grupo de St. Louis. Esse grupo foi  responsável pelo lançamento de uma nova abordagem definida em critérios  diagnósticos para aplicação em pesquisa, o CDP (Critérios Diagnósticos de  Pesquisa). O CDP, a princípio, deveria ter sua aplicação restrita às pesquisas,  mas, com o tempo, constatada a dispersão a que os critérios de diagnóstico  estavam sujeitos pela maneira como os médicos tomavam decisões diagnósticas, a  equipe de pesquisa sugeriu seu uso na clínica. 
   
  O Grupo de St. Louis se apoiaria  nos critérios Feighner para  construção do CDP. O CDP embasaria a elaboração do DSM-III. Para essa empresa o  Grupo de St. Louis uniu-se a pesquisadores da Universidade de Columbia e do  Instituto Psiquiátrico de Nova York. Formou-se um grupo muito especializado,  que mantinha intercâmbio de pesquisa, através de uma rede de trabalhos  científicos, de modo que Gerald Klerman, um de seus integrantes, proclamaria o  grupo como um “colégio invisível de Neo-Kraepelinianos”. Em 1978, Klerman  publicou, na revista Schizophrenia: Science and Practice, um artigo intitulado, “A evolução de uma nosologia científica”,  que teve o tom de um manifesto. Nele, Klerman fazia nove propostas que ele acreditava  que estavam vinculadas às raízes do pensamento de Kraepelin: 1) a ênfase descritiva na categorização dos sintomas; 2) a devoção à  investigação pelo método empírico; e 3) sua postura antipsicanalítica (DECKER,  2007). A referência à Kraepelin, mais que uma homenagem, servia como o resgate  histórico das raízes médicas da psiquiatria. 
   
  O que  se chamou credo Neo-Kraepeliniano era, na verdade, constituído de afirmações  que delimitavam o enquadramento biológico da atividade clínica em psiquiatria,  e também o limite entre a sanidade e a insanidade que havia sido atacada pelo  artigo de David Rosenhan na Revista Science. Foi um tipo de resposta que recolocou a psiquiatria no caminho de sua afirmação  como ciência. O credo Neo-Kraepeliniano afirmava o seguinte: 
  1. A psiquiatria é um  ramo medicina. 
    2. A psiquiatria deve usar  modernas metodologias científicas e basear sua prática no conhecimento  científico. 
    3.  A psiquiatria  trata as pessoas doentes e que requerem o tratamento para a enfermidade mental. 
    4.  Existe um limite  entre o normal e o patológico. 
    5.  Há algumas doenças  mentais distintas. As doenças mentais não são mitos. Há não uma, mas muitas  doenças mentais. A tarefa da psiquiatria  científica, como a de outras especialidades médicas, é investigar as  causas, o diagnóstico e o tratamento dessas doenças mentais. 
    6.  O foco do médico  psiquiatra deve particularmente se colocar nos aspectos biológicos da doença  mental. 
    7.  Nisso deve ser  explícita e intencional a preocupação com o diagnóstico e a classificação. 
    8.  Os critérios  diagnósticos devem ser codificados, e sua validação por diferentes técnicas, deveria ser considerada como um domínio de pesquisa  legítima e preciosa. Ademais, os departamentos de psiquiatria das escolas de  medicina deveriam ensinar esses critérios e não depreciá-los como foi o caso  durante muitos anos. 
    9.  Em esforços de  pesquisa dirigidos para melhorar a confiabilidade e a validade do diagnóstico e da classificação,  deveriam ser usadas técnicas estatísticas. 
    
 
O recurso ao método natural como condição para  alçar a qualidade de ciência vinha agora ser substituído pelo recurso à  estatística; uma ciência associada à epidemiologia e às probabilidades de  medida que deveriam ser tratadas. Mas a primeira tarefa desse grupo de pesquisa  seria definir critérios específicos para várias categorias que no DSM-II  constavam com um elevado grau de generalidade. Alguns exemplos das descrições  que vigoravam no DSM-II, são conhecidos: 
                                
                                                           300.6 Neurose de despersonalização: Síndrome dominada por uma sensação de irrealidade e estranhamento do eu, do corpo e do ambiente. Esse diagnóstico não deveria ser usado se o estado fizer parte de outro transtorno mental, tal como uma reação aguda a uma situação dada. Uma curta experiência de desrealização não é necessariamente um sintoma de doença. (p.41).  
                                    301.6 Personalidade astênica: Esse tipo de comportamento é caracterizado por uma grande fadigabilidade, um baixo nível de energia, uma falta de entusiasmo, incapacidade acentuada de experimentar prazer e uma hipersensibilidade ao stress físico e emocional. Esse problema deve ser distinguido da neurose neurastênica. (p.43).  
                                    308.3 Reação de fuga na criança ou no adolescente: Os indivíduos que sofrem desse transtorno esquivam-se de situações ameaçadoras de modo característico fugindo de casa, sem permissão, um dia ou mais. Eles são de tipo imaturo e tímido, se sentem rejeitados em casa, inadaptados e sem amigos. roubam  sub-repticiamente. 
                                  295.0  Esquizofrenia tipo simples: Esta  psicose é caracterizada antes de tudo por uma diminuição lenta e insidiosa dos  laços e dos interesses pelo exterior, por uma apatia e indiferença que conduzem  ao empobrecimento das relações interpessoais, a uma deterioração mental e a uma  estabilização no nível mais baixo de funcionamento. Em geral o estado é menos  dramaticamente psicótico que em outras formas hebefrênicas, catatônicas e  paranóides da esquizofrenia. Se distingue igualmente da personalidade  esquizóide, na qual há pouca ou nenhuma progressão do transtorno. (DSM-II, apud KIRK & KUTCHINS, p. 95).
                                   
                                    
                                 
                                Expressões vagas como “incapacidade de experimentar prazer”, “sentimento de rejeição” e “sensação de estranhamento do eu” não  eram científicos no sentido da precisão que se exigia de conceitos aspirados  pelos pesquisadores, e deixavam amplas margens para interpretação. A partir de  análise do DSM-II, o Grupo de St. Louis retomou as recomendações do filósofo  Carl Hempel, que propusera que as classificações psiquiátricas só contivessem  definições operacionais, precisamente especificadas e com regras a serem  seguidas pelos clínicos para realização do diagnóstico. Foram elaborados  critérios para quinze transtornos mentais que ficaram conhecidos como Critérios Feighner, em homenagem a John  Feighner, um dos autores do artigo. 
                                   
                                  A diferença entre os critérios  elaborados e as definições do DSM-II era muito contrastante. Enquanto o DSM-II  desenvolvia uma descrição sobre a forma de manifestação da patologia, que  expunha toda a influência psicanalítica com uma exigência implícita de  exercício psicopatológico da parte do avaliador; os critérios elaborados pelo  Grupo de St. Louis eram bastante diretos e indicavam claramente os sintomas que  deveriam ser considerados e sua regularidade mínima para definição de uma  patologia. Abaixo, apresentamos uma amostra da comparação entre ambas as  fontes: 
                                Quadro 1 – Descrição da Depressão 
                                
                                  
                                     
                                      DESCRIÇÃO DA DEPRESSÃO | 
                                   
                                  
                                    DSM-II (1968)  | 
                                    CRITÉRIOS FEIGHNER (1972)  | 
                                   
                                  
                                    Neurose    depressiva: Esse problema se manifesta por uma reação excessiva de depressão    devida à um conflito interno ou a um evento identificável como a perda de um    objeto amado ou de um bem apreciado. Deve ser distinguida da melancolia    involutiva e da doença maníaco-depressiva. As depressões reacionais ou    reações depressivas devem ser classificadas aqui.  | 
                                    As três    exigências seguintes devem ser reencontradas: 
                                      
                                        - Humor    disfórico caracterizado por sintomas do tipo: depressão, tristeza,    abatimento, desespero, sensação de “cafard” (desgosto, angústia), irritabilidade, medo, inquietude e desencorajamento.
 
                                        - Ao menos    5 dos 8 critérios seguintes:
 
                                        
                                          - Pouco    apetite ou perda de peso de 1     kg por semana ou de 5 kg ou mais em um ano, sem    regime.
 
                                          - Sono    difícil, aí compreendida insônia e hipersonia.
 
                                          - Perda de energia, mais exatamente fadigabilidade ou    lassidão.
 
                                          - Agitação    ou inibição.
 
                                          - Perda de interesse para as atividades habituais ou    diminuição da pulsão sexual.
 
                                          - Sentimentos de auto-acusação ou de culpabilidade (uma e    outra podem ser ilusórias).
 
                                          - Queixas que concernem a uma diminuição (real ou não) da    capacidade de pensar ou de se concentrar, tais como, reflexão lenta ou    pensamentos desordenados.
 
                                          - Pensamentos    recorrentes de morte ou de suicídio, compreendido o desejo de estar morto.
 
                                         
                                       
                                      (Nota: se    somente 4 desses 8 critérios forem encontrados, diagnostique-se “depressão    provável” mais que “depressão”.) 
                                      
                                        - Uma doença    psiquiátrica se mantém- se ao menos por um mês sem condições preexistentes,    tal como a esquizofrenia, a neurose ansiosa, a neurose fóbica, as neuroses    obsessional ou compulsiva, a histeria, o alcoolismo, a dependência de droga,    a personalidade anti-social, a homossexualidade e outros desvios sexuais, o    retardo mental ou a síndrome orgânico-cerebral.
 
                                       
                                      (Nota    geral: Os pacientes que sofrem prévia e paralelamente de depressão, uma    doença incapacitante e que ameaça sua vida não receberão o diagnóstico de depressão    primária.)  | 
                                   
                                 
                                Fonte: MATARAZZO, 1983, apud KIRK & KUTCHINS, 1998, p. 96. 
É notável a influência da  psicanálise nas referências ao “conflito interno” ou a “um evento identificável como a perda de um objeto amado”. O  conceito de ‘“objeto” remete sem preocupações de velamento ao texto de Freud, Luto e Melancolia (1917). O DSM-II  comportava categorias cujas definições imprecisas pediam importantes  conjecturas clínicas sobre a natureza do transtorno; basta ler o exemplo acima  para se ter idéia do trabalho que um clínico não familiarizado com os conceitos  psicanalíticos teria que empreender. Baseada no pressuposto segundo o qual o  analista deveria “escavar sob o relato do paciente” para chegar à verdade, a  psicanálise havia retirado a ênfase histórica que a psiquiatria havia dado à  fenomenologia. 
             
O grupo de St. Louis, presidido por Robert Spitzer,  serviu-se dos Critérios Diagnósticos de Pesquisa (CDP) para elaborar um sistema  prévio de classificação, denominado critérios Feighner, que serviria  como preparação do DSM-III. Mais tarde, quando pesquisas de campo permitiram  verificar que uma das mais importantes fontes de erro em diagnóstico devia-se à  dispersão de critérios que os clínicos usavam para atribuir diagnósticos, o CDP  passou a ser recomendado para uso clínico até a publicação do DSM-III. 
O tema da dispersão de critérios  diagnósticos e da dispersão de informações clínicas, revelou à força tarefa do  DSM-III o foco da intervenção necessária para correção do problema da  confiabilidade do diagnóstico psiquiátrico. A ação metodológica deveria incidir  nos instrumentos de avaliação (a entrevista psiquiátrica) e sobre seus  protagonistas, a saber, o entrevistador e o paciente entrevistado. 
 
A questão insolúvel da validade  recebeu um tratamento a partir da proposição de revisões sistemáticas, que  seguiam seu curso com a elaboração do DSM-III. A questão da solução do problema  da validade científica do DSM poderia ser definida como a de uma validade  postergada, uma vez que, para a maioria das categorias clínicas, não há achados  laboratoriais que justifiquem uma condição médica. Andreasen (2007) informa que “a maioria das  categorias diagnósticas são baseadas em julgamento clínico, e não foram  totalmente validadas por dados importantes como correlação do curso clínico, da  história familiar, e resposta ao tratamento”.  
A expectativa de  solução do problema da confiabilidade, intimamente relacionada ao consenso  entre opiniões clínicas sobre um determinado caso avaliado, foi depositada no  DSM-III, como declarado por Gerald Klerman num debate em 1982:
  A meu ver, a realização do DSM-III  representa uma reviravolta decisiva na história da profissão psiquiátrica  americana [...]. A decisão da APA de elaborar e promover seu uso significa da  parte da psiquiatria americana a reafirmação vigorosa de sua identidade médica  e de seu pertencimento a medicina cientifica [...]. E continuou: o tema desse  encontro é a ciência a serviço da cura. Como compreendo, o DSM é a encarnação  mesma desse tema, mais que qualquer outro adquirido pela psiquiatria americana  desde o aparecimento dos novos medicamentos. 
    E concluiria: não existe manual de psicologia e de  psiquiatria que não utilize o DSM-III por princípio organizador [...] esse  debate já é anacrônico. A vitória do DSM-III foi reconhecida pelos nossos  colegas e nossos adversários em psicologia e outras profissões da saúde mental  e em outros países. (KLERMAN, 1984, apud KIRK & KUTCHINS, 1998, p. 27).
   
    
 
                                Outro registro da importância do lançamento do  DSM-III em 1980 para a psiquiatria americana foi realizado por Gerald Maxmen,  também defensor do manual, em seu livro “Os  novos psiquiatras” (1985): 
                                   
                                   
                                
                                  Em 1º de julho de 1980, a supremacia da  psiquiatria tornou-se oficial. Naquele dia a APA publicava um sistema de  diagnóstico psiquiátrico radicalmente novo, o DSM-III. Adotando o DSM-III,  cujas bases são científicas, como sistema oficial diagnóstico, os psiquiatras  americanos rompiam com a tradição que já durava 50 anos de diagnósticos baseados na psicanálise. Talvez mais do que qualquer outro evento, a publicação  do DSM-III mostra verdadeiramente que a psiquiatria operou uma revolução.  (MAXMEN,1985, apud KIRK &  KUTCHINS, 1998, p. 27-28).                                 
                                 
                                Os Neo-Kraepelinianos acreditaram que haviam  conseguido o intento de melhorar a confiabilidade diagnóstica pela melhoria da taxa  de concordância entre atribuições de diagnóstico. Robert Spitzer declarou que o  reexame das provas de campo demonstrou boas taxas de confiabilidade, e Gerald  Klerman declarou, por sua vez, que o problema da falta de confiabilidade nas  categorias havia sido resolvido e que o DSM-III promovera uma revolução na  psiquiatria. Entretanto, autores como Stuart Kirk e Herb Kutchins (1998, p.28),  psicólogos e professores da Universidade de Columbia e Berkeley,  respectivamente, declararam que a  revolução do DSM-III foi somente uma revolução de discurso. Ressaltaram que  houve vários problemas metodológicos nos testes de confiabilidade tais como o  fato de que, diante da dificuldade em controlar estudos realizados em mais de  um lugar ao mesmo tempo, os cálculos incidiram sobre os profissionais mais  acessíveis, restringindo desse modo o número de pacientes aos quais os  diagnósticos foram atribuídos. Ainda assim, nesses casos, a taxa de  concordância não ultrapassou o limite estipulado pelo coeficiente Kappa2de (0,7), então usado, para calcular a taxa de  concordância entre diagnósticos e apurar a confiabilidade das categorias  usadas. Outros pesquisadores observaram que as taxas de concordância obtidas  nos testes não se repetiriam no uso clínico cotidiano.  
                                
                                  
                                    2 Em 1967, Spitzer, Fleiss, Cohen & Endicott  publicaram um artigo intitulado “Quantificação  do acordo no diagnóstico psiquiátrico”, que propunha o uso de um índice  para ajuste da concordância entre os resultados de pesquisa - o coeficiente Kappa de Cohen. Criado  para aplicação em outros campos acadêmicos, em psiquiatria ele traria a  vantagem de sua destinação inicial como retificador das taxas de  confiabilidade. A inconsistência nas taxas de concordância e a necessidade de  se apurar a prevalência dos transtornos na população que levaram Spitzer e seus  colaboradores a proporem o coeficiente Kappa como um exemplo de fórmula capaz  de abolir a incidência do acaso nas pesquisas. Sua fórmula é a seguinte: k=(po-pc)/(1-pc), onde po é a  proporção de acordo observado, pc o  acordo atingido por acaso e o denominador 1, indica a concordância perfeita. As  medidas para avaliação dos resultados considerariam taxas que variam de 0  (concordância devida ao acaso) a 1(índice máximo de concordância) com o índice  0,7 sendo considerado como média aceitável.                                   
                                   
                                 
Diante dos questionamentos, de acordo com a  filosofia de trabalho do Comitê de Nomenclatura e Estatística, de  tratar os possíveis defeitos do manual como questões de ajuste entre as  edições, a APA investigou a variação dos dados das entrevistas e organizou  novos experimentos de atribuição de diagnósticos do DSM-III-R. As pesquisas  usaram quatro métodos diferentes, e um deles envolveu o uso de softwares ou de questionários de  entrevista para identificação dos sintomas dos pacientes. Foram realizadas,  também, entrevistas que foram discutidas pelas equipes para que se chegasse a  um diagnóstico pelo consenso. Porém, a comparação entre os resultados dos  métodos mostrou que os índices do Kappa oscilaram entre (0,5) e (0,6), enquanto a taxa básica para concordância em Kappa é de (0,7). Dos cinquenta  pacientes que participaram do estudo, somente em vinte e sete dos casos  observou-se concordância na atribuição diagnóstica. 
   
  Os estudos e a reanálise de dados  de pesquisa de confiabilidade após a publicação do DSM-III mostraram problemas  maiores com relação ao diagnóstico de esquizofrenia.  Nos Estados Unidos, por exemplo, os psiquiatras mostraram propensão em expandir  a atribuição do diagnóstico de esquizofrenia, identificando sintomas dessa  categoria em pacientes para os quais pesquisadores de outros países atribuíram  outros diagnósticos. 
   
  O uso de sistemas de diagnóstico  diferentes também não diminuiu as discordâncias. A comparação dos resultados  mostrou que na aplicação dos critérios da CID-8, em um grupo de setecentos e  seis pacientes diagnosticados como psicóticos, sessenta e oito receberam  diagnóstico de esquizofrenia. Quando foi o caso da apuração da aplicação  realizada por um computador o número diminuiu para cinco. Na aplicação dos  Critérios Diagnósticos de Pesquisa (CDP), de autoria dos Neo-Kraepelinianos, os  resultados indicaram que vinte e oito portavam a doença e a avaliação do  DSM-III indicou dezenove pacientes (BENTALL, 2004, p. 65). 
3. Conclusão 
A persistência do problema da  baixa convergência na atribuição de diagnósticos indicava que o foco do  controle que permitiria uma solução para o problema da baixa taxa de  confiabilidade da classificação poderia se dividir em duas linhas de ação  relacionadas à dispersão de critérios na  atribuição de diagnósticos e à dispersão  de informações fornecidas pelos pacientes e coletadas nas entrevistas  clínicas. O enquadramento da entrevista como foco do controle da exploração  clínica era uma necessidade, como também a definição de uma fórmula estatística que permitisse abolir o acaso na convergência  de pareceres sobre um diagnóstico emitido por clínicos em situações diferentes  na avaliação de um paciente. O impacto generalizado que a aplicação dessa fórmula  estatística teria na clínica, diria respeito, a partir da formação de novos  psiquiatras, não só à exclusão do sujeito, mas também a extirpação, no DSM-III,  das referências à psicanálise, totalmente dependentes da imprevisível  manifestação do inconsciente como fenômeno clínico. Diria respeito também à  demissão da verdade enquanto preocupação teórica sobre a etiologia das doenças  mentais e um deslocamento da questão do método, como instrumento de acesso ao  real, para a estatística enquanto definidora de evidências clínicas. Diria  respeito ao abandono gradual da psicopatologia como uma disciplina de formação  e de investigação clínica. 
O problema da validade científica dos diagnósticos  psiquiátricos, ao invés de apontar para necessidade de uma análise dos  fundamentos da pesquisa, que ao mesmo tempo reabrisse o debate sobre os  princípios metodológicos usados na clínica dos problemas psíquicos, com o  advento do índice Kappa,  poderia ser senão abolido, ao menos adiado para  as edições subseqüentes.
Referências  Bibliográfica  
ANDREASEN, Nancy C. et.al.. DSM  and the death of phenomenology in America:  the rise of psychoanalysis and the mid-Atlantic counterrevolution. The University of Iowa College of Medicine Mental Health  Clinical Research Center, Iowa City, IA. Disponível  em: <http://www.medscape.com/viewarticle/557763_3>  Acesso em: 24, fev. 2009. 
  BENTALL, Richard P. Madness Explained, psychosis and Human  Nature. England: Penguin, 2004. http://www.bernardojablonski.com/pdfs/graduacao/rosenhan.pdf,  último acesso em: 31, jan. 2010 
  DECKER, Hannah S. History of Psychiatry, How Kraepelinian was Kraepelin? How  Kraepelinian are the neo-Kraepelinians? Vol. 18,  No. 3, 337-360 (2007) DOI: 10.1177/0957154X07078976, disponível em:  
  < http://hpy.sagepub.com/cgi/content/abstract/18/3/337> 
  KIRK , S. & HUTCHINS, H.  Aimez-Vous le DSM? Le  Triomphe de la psychiatrie américaine. Collection  Les êmpecheurs de Penser em Rond-Institut Synthélabo pour le progrès de la  connaissance, 1998. 
  OTHMER, EKKEHARD. A entrevista clínica utilizando o  DSM-IV-TRtm / Ekkehard Othmer e Sieglinde C. Othmer;  PP. 24.  trad. Cláudia Dornelles. Porto  Alegre: Artmed, 2003. 
  ROSENHAN.  Sobre Ser São em Lugares Insanos.  Science 19 January   1973: Vol. 179. no. 4070, pp.  250 – 258): Traduzido por Renata F. Brasileiro, disponível em: http://www.bernardojablonski.com/pdfs/graduacao/rosenhan.pdf,  último acesso em: 31, jan. 2010. 
  SLATER,  Lauren- Sobre Ser São em   Lugares Insanos – Experimentos com Diagnósticos Psiquiátricos.  Mente e Cérebro, (p.82-115):Traduzido por Vera de Paula Assis.- Rio de Janeiro  : Ediouro Publicações Ltda., 2004.   
  
Recebido em Junho de  2010 
  
Aceito em Agosto de 2010                               
                               
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