|
Trazemos neste artigo, dois movimentos de trabalho: algumas questões que, enquanto
supervisores na rede, pudemos formalizar ou estão em vias de formalização sobre o
dispositivo da supervisão nos Serviços de Saúde Mental e do lugar,da posição do supervisor,
trabalhados por nós com o grupo participante da oficina de supervisão 2 - e o outro
movimento relativo à experiência na oficina – resultado do trabalho do grupo que a construiu.
Embora a contribuição dos participantes esteja presente neste texto, a eles não cabe a
responsabilidade pelas interpretações, análises e conclusões aqui expostas.
Lembrando primeiramente que oficina no nosso bom português significa lugar onde se
elabora, fabrica ou conserta algo, fomos tentando fazer valer esse significante no nosso
trabalho coletivo. Quando nós discutimos oficina de supervisão pensamos no ofício e como
tal já de saída, podemos retificar nosso nome: supervisor na rede e não da rede. Somos mais
um3... na rede.
A Supervisão clínico-institucional, não é um instrumento estático e acabado, cuja
direção já está dada, mas estando em intensa mutação, busca reinventar um saber sobre o
necessário - mas problemático laço entre a clínica e a política - que requer constante debate e
uma escuta atenta por parte do supervisor.
Trata-se na supervisão de um Espaço cuja função essencial é possibilitar a palavra –
que nem sempre é fácil, pois a supervisão incide nos pontos onde o trabalho não anda ou nos
pontos de dificuldades técnicas ou mesmo subjetivas, de cada um.
Dessa forma, é um dispositivo delicado que exige cuidados e uma escuta atenta para
que ele não se transforme nem na garantia do técnico, tampouco na "mostração" das faltas e
fracassos destes ou da instituição, por parte da equipe ou do próprio supervisor. Resvalar para
"dar" o saber que falta, é um risco sempre presente neste trabalho - o que impõe criar sempre
novas estratégias de direção deste dispositivo.
Constatamos que chega à supervisão uma infinidade de demandas: de um saber-fazer,
de um aval, de prescrições técnicas ou de reconhecimento. Alguns técnicos querem "ver como
se faz". Nesse sentido, são eles mesmos os super-visores.
Sabemos que as práticas de supervisão são muitas e nos seus meandros são possíveis
muitas posições e respostas que flutuam de um discurso teórico a outro. Longe do domínio da
² Trata-se da Oficina de supervisão realizada na escola de Saúde Pública de Minas Gerais – ESP, parte do
Seminário "Saúde Mental: Desafios da formação", 27, 28 e 29/05/ 2009.
³ Aqui vale lembrar o termo "mais um" utilizado por Jacques Lacan, nas suas teorizações sobre o Cartel. "Mais
um" é aquele que estando no grupo, está, no mesmo movimento, fora dele, "êxtimo", numa "intima
exterioridade" ao grupo, provocando a elaboração e o produto de cada um, no grupo. VERIFICAR: LACAN,
Jaques.
técnica, de um saber-fazer, está em jogo na supervisão uma dimensão ética: a verdade do ato
clínico enquanto algo que, por estrutura, coloca a questão de um não-saber, de uma
incompletude quanto ao saber sobre o ato, num enlace, nem sempre fácil, com a política.
A supervisão não dá garantias. O sujeito não se garante de nenhum outro (Outro). No
dizer de Lacan, "uma responsabilidade que a realidade impõe ao sujeito quando ele é
praticante é a de assumir seus riscos."
Mesmo que a supervisão tenha na instituição, um caráter coletivo, ela se conta por
um. É no um a um que se tece a possibilidade de que um clínico se invente, com seu estilo,
com sua marca. Este é um elemento estratégico por que representa a tentativa de sair da
indiferenciação que encontramos nas instituições.
No Para todos, ao supervisor cabe introduzir o Um a Um.
Sabemos que a clínica distingue-se com certa radicalidade da ordem institucional. Há algo na clínica que resiste que escapa à ordem prescrita pela instituição. Não raro, é isto que
escapa que não se apazigua, que não se domestica, que não tem governo, que a instituição lê como seu próprio furo, um furo de seu saber e tenta colmatar, quando não, tamponar com
medidas administrativas. Se de um lado esse fato é importante, posto que a partir dos furosé que a instituição se reinventa, é também e, ao mesmo tempo, seu lugar de risco, pois se ela
não se reestruturar nas bordas deste furo, suportando-o, dando-lhe suporte, ela o sutura e o
primeiro a sofrer estes efeitos, é o "sujeito" em questão.
É neste lugar que talvez possamos situar o trabalho de supervisão. Ao supervisor cabe
introduzir interrogantes, criar um vazio de respostas, manter um ponto de não-saber - lugar
onde o sujeito em questão, possa emergir como resposta ao real em jogo.
Há um risco de que, onde falha o saber da instituição, do projeto da equipe, o
supervisor responda como aquele que sabe e não como o que interroga, suturando o único
ponto onde o sujeito poderia advir e onde o clínico poderia se inventar e calcular as
estratégias de direção de um tratamento, assim como os dispositivos institucionais que lhe dê
sustentação. Se a relação se sustentar no imaginário de que o supervisor vem trazer o saber
que falta à equipe e, o supervisor, capturado neste engodo, colocar-se na posição de mestria,
fazendo mostração de saber ou tentando agenciar o projeto da equipe ou ainda, apontando os
furos do trabalho, a supervisão se transforma numa "super-viseira".
O supervisor, muito mais que produzir saber pode contribuir na retificação do lugar
lógico do clínico, a partir do ato de sua escuta. O quê tem conseqüências sobre o projeto
político.
"Que o supervisor se faça causa da junção-disjuntiva entre a elaboração do saber e
a manutenção necessária da disciplina da ignorância" (SOLLER, 1992: 39).
Dito de outro modo, o supervisor precisa abster-se de ensinar, de operar com um
saber, e oferecer esse espaço de palavra que, endereçada, de algum modo retorna ao falante ou
permite que ele mesmo localize as questões. No silencio, pondo em relevo os saberes já
produzidos na experiência, pode surgir algo novo, um ensinamento de quem acolheu o caso
ou o próprio caso que tocou a equipe. Devemos zelar pelo cotidiano desse fazer.
Bem, se não se opera na supervisão com um saber prévio, numa posição de "ensinante" de que se trata então na supervisão?
Vamos trazer alguns elementos para irmos construindo uma resposta:
- Trata-se de suspender as evidências: com o tempo e a experiência, numa primeira
visada, acreditamos que sabemos previamente e o caso torna-se de tal modo evidente que nos
ensurdece, obscurece, nos impede de descobrir o que há de novo ali nas condutas, nos
discursos, nos silêncios do paciente;
- Trata-se de tornar estranho o que é familiar e tornar familiar o estranho: às vezes
é necessário construir o estranho posto que a imersão no cotidiano pode nos ensurdecer
justamente por sua familiaridade. Para que alguma coisa possa se tornar objeto de
questionamento ou de compreensão é preciso torná-la estranha para então, "retraduzi-la", ao
final: do familiar ao estranho, do estranho ao familiar.
- Trata-se de não permitir que se faça uma leitura moral do sujeito ou da situação.
Há casos em que a equipe embarca numa leitura moral do caso, fazendo obstáculo à escuta.
- Trata-se de não permitir que o técnico se identifique com o paciente na posição de
vítima. Vítima da família, do social, do próprio Serviço, encarcerando-o numa posição da qual
ele não pode sair.
- Trata-se de fazer vigorar certo entusiasmo, pois o cotidiano, as falhas institucionais,
as dificuldades do ofício, fazem apagamento da alegria com o trabalho, do investimento com
o caso clínico ou com os projetos políticos.
- Trata-se de fazer vigorar a escuta ao paciente, possibilitar falar sobre o que se ouviu
de seu paciente de modo que se produza um saber sobre sua escuta, sobre como se interveio,
sobre o que não se pôde fazer nas situações difíceis, sobre o que não se escutou, enfim,
mesmo quando se tenta obstruir a escuta com as falhas institucionais.
O "trata-se", é tomado ao pé da letra. Na supervisão, algum tratamento é dado ao
caso, ao sujeito em questão, aos pontos de impasse clínico-institucionais, ao saber que se tem
ou não se tem, enfim, acolhendo na escuta aquele que fala e aquele de quem se fala, certo pode ser tratamento identificável quando se produz saídas inventivas, quando cada um se
implica, quando se produz caminhos inéditos.
O supervisor pode ser livre na estratégia e na tática, mas a política é a política do caso
único, da singularidade e da surpresa do acontecimento em jogo, que surge a cada vez que nos
encontramos. Encontramo-nos - muitos trabalhadores decididos por sermos aprendizes da
clínica.
A clínica que se constrói assim, não suporta o regime autoritário, o domínio de uma
opinião ou consenso ou aplicação do campo da ciência aliado ao Mercado. Aprendemos que
se o computador não erra é aí segundo Millor Fernandes, em sua Bíblia do Caos, aí que ele
erra mais, pois o humano deve se submeter à experiência e ao erro.
Importante então que cuidemos para que a formação dos supervisores não seja
submetida ao discurso universitário, pois preocupamo-nos com formação e exigências de
avaliação de currículo ao modo unicamente da universidade atual, a operacional segundo
Marilena Chauí. Digo que o professor na universidade operacional não se preocupa com a
docência, com a presença, mas com os produtos na prateleira do saber, os pontos no diploma,
os produtos livros-publicados. Não perde tempo com aluno atrasado.
A rede não é sem furos e nem supõe acordos tácitos, ela se esgarça, rompe, fura e dá
nós, duros de roer, pode prender quando não se renova. O supervisor pode ser mais um que
sai da regra instituicional da burocracia vigente, do desânimo pela impotência de uma
situação muito difícil, ele deve incitar ao ânimo, ao entusiasmo e mesmo adivinhar um ponto
que quer fazer ruptura inaugural.
Os casos são estudados, construídos, apresentados, mas sobretudo na política da
clínica são inclassificáveis porque deve se tratar de sujeitos únicos. A supervisão é
fundamental para estruturar os serviços que devem ter a clínica como norte e não a
organização, mesmo que funcional.
Vale aqui a idéia de democracia radical em Badiou, fora da política da representação e
do número de votos. O Um que se instala é de diferença que não faz casamento com o
Mesmo.
Supervisão não deve então cair no marasmo, no costume e nem deve ser cândida. Tem
o tom do conflito e da alegria. Por vezes vamos nos solidarizar com e no fracasso.
Cuidar do caso na cidade, da intersetorialidade e convocar os atores diversos a falarem
o que têm a dizer. Aqui se trata de conceito difundido de clínica ampliada que não deve ser
menos rigoroso que o de clínica em sua especificidade. Os casos são complexos seja qual
situação que esteja em jogo.
O encontro de cada supervisão deve ser vivo, "irrepetível" a cada vez. Isso nos
entusiasma a continuar como aprendizes e abertos ao novo.
Alguns interrogantes e considerações:
Trazemos a seguir algumas questões, perguntas e considerações feitas pelos
participantes da oficina e como produto do trabalho.
- Todo mundo deve fazer tudo (desespecializar): Esta posição foi importante em dado
momento do Projeto de Saúde Mental para que houvesse um deslocamento da loucura e do
louco, do saber e práticas psiquiátricas exclusivas, mas hoje já podemos interrogar - sem nos
deixarmos iludir por quaisquer cobiça de corporativismos – que efeitos isso tem trazido para o
projeto clínico e para o projeto político de uma Equipe de Saúde Mental?
- Se a supervisão, por se dar no coletivo, pode fracassar na função de construir uma
direção de tratamento, pois as questões que atravessam uma direção não se reduzem às dicas
técnicas ou a construção de dispositivos institucionais posto que coloca em relevo aquilo que
do sujeito faz obstáculo ao lugar clínico – ela permite:
- desbastar leituras morais;
- Não consentir que o ponto onde o tratamento não anda seja obturado pelas falhas
institucionais, mas fazer retornar ao clínico aquilo que é necessário escutar;
- Requer a participação de todos os agentes de cuidado (do Serviço, de outras
Secretarias, ONG's, enfim os envolvidos com o caso) nas supervisões, realizando, em ato, "o
laço" e mais especialmente a construção viva da rede de cuidados.
- Faz prevalecer a escrita dos casos a serem apresentados. Roland Barthes, diz que na e
pela escrita, o escrevente pode fazer escoar sua prisão e sua solidão, sua dor e suas delícias.
Freud, dizia nas suas cartas à Fliess: "preciso de certo mal-estar para escrever, do qual sou
obrigado depois a me livrar". Ele ousava repetir, assim mesmo, esse gesto. Revivenciando os
rastros de uma experiência, certamente sabia que escrevê-la, era uma forma de tratá-la.
Denominar algo é também separar-se dele. Por isso, produz seus efeitos.
O supervisor pode ser alguém de dentro da equipe? Pergunta uma participante.
Discutiu-se que somente se ele conseguir estar fora, estando dentro, ou usando um termo de
Lacan, se ele puder estar numa relação de extimidade – íntima exterioridade em relaçãoà equipe, ao Serviço. Assim também precisa operar o que vem de fora. Na mesma lógica, pois
pode vir de fora e se colocar de tal modo dentro, perto, integrante, que faz obstáculo à sua função.
Os supervisores trazem uma questão pouco discutida, quase silenciada ou encoberta
pelo termo "capacitação": o desamparo e angústia de muitos técnicos que se deparam com
uma clínica essencialmente de casos graves. Desamparo e angústia que chegam à supervisão e
ao supervisor cabe acolher. Muitos técnicos, muitos clínicos dos Serviços de Saúde Mental
não se tratam, não fazem sua análise ou psicoterapia, não passam pela experiência da palavra,
do inconsciente e sofrem muito com o trabalho. A capacitação técnica que é fundamental,
nesses casos, ou a formação, a supervisão, esbarram neste ponto. Fica o alerta aos clínicos.
Uma das participantes pergunta como o supervisor trabalha para não permitir a
identificação da equipe ou do clínico com o paciente no lugar de vítima. Discutiu-se que não
se tem uma receita, prescrições, mas fazer vacilar estas posições, separando o clínico do
discurso do paciente, solicitando que se fale na terceira pessoa quando se relata o caso,
introduzindo perguntas onde a certeza instaura-se, isso não pode escapar ao supervisor e pode
trazer efeitos de destravar identificações.
Uma das questões levantadas por uma participante que teve ressonâncias na
experiência de muitos outros, foi à facilidade com que se desiste "do caso", muitas vezes pela
impotência frente ao não-saber que a clínica comporta, ele é encaminhado. Perguntamo-nos
se aqui há um descaminho. Discutiu-se que até podemos deixar o caso, mas o caso não nos
deixa. A supervisão contribui para mudar a lógica do encaminhamento, na delicadeza de cada
caso, quiçá propondo o encaminhamento responsável, deixando de saída posta a implicação
do que encaminha, pois responsável é aquele que responde por...
Muitas questões giraram em torno da formação em Saúde Mental e da formação do
supervisor que não pode ser acadêmica. O exercício da supervisão não é leigo, mas não se
restringe à academia, há um saber de experiência a ser compartilhado, apurado, requintado.
Faltam espaços de encontro entre supervisores.
O supervisor não é super. Cuidar para que os muitos envolvidos sejam ouvidos em sua
diferença, com igualdade e equanimidade, em sua inventividade. Cuidar para que os efeitos
devastadores e mesmo adormecedores do uníssono não cale o que há de novo em soluções tão
mínimas quanto importantes no encaminhamento do caso na rede.
Referências Bibliogáficas
Badiou, Alain - Conferências de Alain Badiou no Brasil - Célio Garcia (org), Belo Horizonte. Autêntica, 1999.
BARTHES, Roland. O Grau zero da Escrita. Lisboa: Edições 70, 1989. Tradução Maria Margarida Barahona.
Carta aos Supervisores. O Ofício da supervisão e sua importância para a rede de Saúde Mental.
Coordenação Nacional de Saúde Mental, Ministério, Brasília, 2007.
Fernandes, Millor: Verbete, Computador in - Millôr definitivo: a bíblia do caos. Porto Alegre: L&PM, 1994.
Lacan, Jacques, A direção do tratamento e os princípios de seu poder - in: Escritos; tradução de Vera Ribeiro -
Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998. P. 596 [ 590 ].
SOLER, Colette. Que controle? IN: BENETI (org) A questão da Supervisão. Belo Horizonte: Tahi, 1992.
Teixeira, Antônio M. R. Do Mesmo ao Outro sexo in A soberania do inútil e outros ensaios de psicanálise e
cultura. / Antônio M. R. Teixeira. - São Paulo: Anablume, 2007.
Zenoni, Alfredo. abrecampos. Revista de Saúde Mental do Instituto Raul Soares. Ano 1. No. 0. Belo
Horizonte. Instituto Raul Soares/FHEMIG e Unicentro Newton Paiva, 2000.
Recebido em Junho de 2011
Aceito em Julho de 2011
|
|