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                        Introdução 
                          O grupo de pesquisa: Investigações sobre os efeitos discursivos da "Capsização" da 
                          atenção a saúde mental: avaliação qualitativa dos processos de institucionalização do 
                          modelo CAPS, ponto de partida para a revista eletrônica CliniCAPS e do qual pude fazer 
                          parte, realizou a análise e a avaliação dos processos de institucionalização do modelo CAPS 
                          com uma metodologia baseada na construção do caso clínico, cujo fundamento é a 
                          composição da história do sujeito feita pela equipe. A investigação buscou discutir os 
                          impasses clínicos e institucionais enfrentados ao longo da direção de tratamento nos casos de 
                          psicose, sendo um ponto de convergência entre a prática metodológica e a construção teórica 
                          envolvida na pesquisa. 
                           
                          Ao longo do trabalho, acompanhando as discussões de casos clínicos no campo da 
                          psicose, algumas ideias surgiram em relação à temática, as quais serão debatidas no presente 
                          texto. 
                           
                          O Centro de Atenção Psicossocial, CAPS, foi uma alternativa criada para atender uma 
                          demanda visada pela Reforma Psiquiátrica, ou seja, atender a pessoa com sofrimento mental 
                          fora da Instituição fechada de tratamento, tal como o Hospital Psiquiátrico. Estes Centros 
                          acolhem pacientes portadores de sofrimento mental, os quais recebem tratamento diário 
                          realizado em serviços abertos. 
                           
                          Os CAPS's são compostos por equipes multiprofissionais, envolvendo o trabalho da 
                          psiquiatria, psicologia, enfermagem, serviço social, terapia ocupacional, fonoaudiologia, 
                          dentre outros, organizados de acordo com densidade demográfica de cada região. Cada equipe 
                          possui seu modo próprio de funcionamento, o manejo clínico, os modos de intervenção, as 
                          relações internas e a articulação com a rede de saúde, resultando em significantes mestres que 
                          determinam a lógica particular de cada serviço. 
                           
                          Alguns pacientes em tratamento nestes serviços prolongam o tempo de permanência, 
                          causando embaraços na equipe. Há dificuldades em relação ao manejo clínico de um paciente 
                          que permanece por longo tempo no CAPS, colado ao tratamento, ou mesmo à instituição, 
                          porém sem respostas ou movimentos do sujeito, que apontem para alguma saída de um 
                          embotamento afetivo ou de rupturas de laços. Nesses casos, a alta torna-se um impasse diante
                          de um quadro incerto com relação à uma possível estabilização do sujeito. 
                           
                          Torna-se complexo falar em estabilização, uma vez que esta pode se apresentar sob 
                          várias formas. Dentre os quadros semelhantes aos descritos dos CAPS, vários deles podem ser 
                          considerados estabilizados. Ou poderiam estar apaziguados, cronificados? O que especifica a 
                          estabilização? Qual a estrutura comum entre as diversas formas de estabilização? Segundo 
                          Alvarenga, "A Estabilização é uma operação que circunscreve, localiza, deposita, separa ou 
                          apazigua o gozo, correlativa de uma entrada em algum tipo de discurso, por mais precário que 
                          ele seja". (Alvarenga, 2000. p. 18). Sendo assim, podemos perceber alguns indícios que 
                          diferenciam uma estabilização de outras formas de movimentos realizados pelo sujeito em 
                          relação à uma ruptura subjetiva. 
                           
                          A estabilização envolve o alcance de certa entrada ou circulação no social. Porém, o 
                          que acontece muitas vezes com determinados pacientes é a percepção de uma melhora no 
                          quadro clínico, acompanhada de uma suposta inserção. Ao construirmos o caso, verificamos 
                          que na verdade esse sujeito continua sofrendo, porém de forma cronificada, ou seja, ainda sem
                          condições de constituir um enlaçamento social. O paciente pode ser incluído em programas 
                          terapêuticos ou assistenciais, pode circular pelo social, mas isso não garante sua inserção, que 
                          significa a condição de estabelecer alguns vínculos sociais. No esforço de alcançar uma 
                          inserção, muitas vezes a instituição se torna o Outro capaz de ser referência e ponto de apoio. 
                           
                          Trabalhamos aqui com o conceito de Outro definido por Lacan (1954-58, p. 555) como sendo 
                          "o lugar de onde lhe pode ser formulada a questão de sua existência". A discussão sobre laço 
                          social, estabilização, relação ao Outro será desenvolvida adiante. 
                           
                          O modo de funcionamento da equipe leva a manejos clínicos próprios que, por sua 
                          vez, promovem diferentes formas de estabilização e inserção do usuário no serviço e no meio 
                          social. Destacamos aqui pelo menos duas maneiras que a equipe pode funcionar, segundo 
                          teorizações de Zenoni (2000) e Viganó (1999): a equipe pode atuar no lugar do Outro que 
                          impõe a lei absoluta, submetendo o paciente cada vez mais aos seus caprichos, ou, se 
                          esvaziando de um saber prévio, colocar em evidência o saber do sujeito, com sua lógica de 
                          funcionamento, inserindo-o como principal agente do seu tratamento. 
                           
                          Segundo Zenoni, "A primeira condição de um acolhimento institucional da psicose é o 
                          esvaziamento de saber, que deriva do fato de colocar a clínica em posição de mestre. E a 
                          segunda condição ligada a esta, consiste num certo esvaziamento do querer ou do poder". 
                          (Zenoni, 2000. p. 21 e 22). Ao considerar o saber do paciente e suspender o saber prévio do 
                          analista frente à psicose, surge um outro modo de operar o tratamento. Ainda como nos traz Zenoni, "Dever-se-ia fazer dos serviços psiquiátricos um instrumento do qual esses pacientes 
                          podem se servir segundo suas próprias referências". (Zenoni, 2008). 
                           
                          Pode-se considerar que um dos objetivos do serviço CAPS seria buscar a reinserção do 
                          paciente respeitando sua singularidade. Este sujeito que está agora desospitalizado, está 
                          supostamente incluído na sociedade. Porém, essa inclusão não poderia ser considerada como 
                          uma mera adaptação do indivíduo a uma sociedade da qual ele foi excluído, mas sim, uma 
                          questão de incluir a diferença. Como trata Quinet, "Em vez de foracluir a inclusão, trata-se de 
                          incluir a foraclusão". (Quinet, 2006. p. 50) 
                           
                          Muitas equipes possuem estratégias de intervenções planejadas, que muitas vezes são 
                          discutidas em reuniões periódicas dos CAPS, em forma de debate democrático (Viganó, 
                          1999). Essas estratégias podem ser reavaliadas para beneficiar a autonomia do usuário em 
                          situações nas quais novas demandas surgem. Intervenções que operem no sujeito e não no seu
                          comportamento. Para isso é necessário um espaço de discussão, de caráter mais clínico, 
                          conforme a particularidade de cada paciente, que permita uma maior articulação entre a 
                          equipe. Para o paciente, o serviço não pode ser o Outro absoluto, é preciso que o sujeito veja a 
                          instituição como também submetida a um sistema de regras e leis que a organiza, o que pode 
                          ser evidenciado pela prática da equipe. 
                           
                          A instituição CAPS se torna o Outro moderado para o sujeito psicótico a partir do qual 
                          é possível estabelecer novos modos de relação e alcance de um laço social. O manejo clínico 
                          possibilita que o usuário possa caminhar para a entrada em algum tipo de discurso e, 
                          sobretudo, se fazer reconhecido no discurso do Outro. É provável que prescindindo do lugar 
                          do mestre e vislumbrando um posicionamento da equipe na qual o paciente possa ser ouvido, 
                          haverá um suporte para que este se organize segundo suas próprias referências, sua história e 
                          seu saber, considerando o lugar que o CAPS, e cada técnico, ocupa na trajetória deste usuário. 
                          Versar sobre o laço social na psicose implica em refletir sobre a teoria dos discursos de 
                          Lacan, fundamental para que possamos esclarecer os modos de relação. A partir do que Freud 
                          apresenta como as formas de laço, representadas pelo ato de governar, educar, analisar e de 
                          fazer desejar, (Freud, 1929). Lacan introduz o discurso do mestre, o discurso universitário, o 
                          discurso do analista e o discurso da histérica (Lacan, 1969-70). O discurso é um laço social, a 
                          cultura, que se desdobra em quatro configurações de significantes. Estas articulações vão 
                          envolver quatro dos mais importantes conceitos de Lacan, a saber: S1 (significante mestre); 
                          S2 (o saber); $ (sujeito cindido) e objeto "a" (causa do desejo ou mais-de-gozar). Estes termos 
                          ocupam quatro postos: Agente, Outro, Produção e Verdade. 
                           
                          Os quatro postos são fixos, já os termos vão se deslocar entre os postos, dando origem 
                          aos quatro discursos, pois a cada quarto de giro, um termo ocupará um posto diferente, 
                          gerando articulações e relações distintas. 
                           
                          A circulação nestes discursos se aplica à neurose. O psicótico não se enquadra dentre 
                          eles, portanto, ele terá que construir uma alternativa particular para que possa se organizar 
                          psiquicamente e em suas relações com o mundo. 
                          O sujeito psicótico está fora do discurso uma vez que o significante do Nome do Pai 
                          foi forcluído na sua constituição estrutural. Segundo Lacan (1955-56) a inscrição do Nome do 
                          Pai inaugura a cadeia significante na estrutura neurótica, assim como a dimensão da lei 
                          simbólica. Portanto, a forclusão do Nome do Pai implica na abolição dessa lei, 
                          comprometendo todo o sistema significante do sujeito na psicose. Perante a esse 
                          comprometimento é que se podem articular as formas de relação com o Outro do sujeito 
                          psicótico, no que se refere ao laço social. Quando no desenvolvimento do sujeito, há a 
                          inserção do significante do Nome do Pai, há então um Outro que é barrado pela castração, 
                          pela lei simbólica, esse Outro contém em si uma falta. É o que ocorre na neurose. Na psicose 
                          o Outro não é barrado, justamente pela falta da inscrição do significante da lei simbólica. 
                           
                          Sendo assim, o psicótico está sempre submetido a um Outro consistente, absoluto. Dessa 
                          forma, a posição do sujeito psicótico diante desse Outro absoluto é de objeto de gozo, de uso 
                          do Outro. 
                           
                          Com a falta de referência simbólica, o sujeito psicótico funciona predominantemente 
                          no registro imaginário. Imerso nessa instância, a relação especular torna-se sua única 
                          alternativa de identificação. Essa identificação especular imediata compromete sua 
                          estabilidade frente a significações simbólicas, comprometendo assim as relações com o Outro 
                          e a constituição de um laço social. 
                           
                          O manejo clínico na psicose tem a peculiaridade da prudência e da cautela. Essa
                          cautela diz respeito ao cuidado necessário para que o analista não seja o Outro gozador a
                          quem o psicótico se submete. Na relação entre analista e psicótico, quando o primeiro constrói
                          com o sujeito e o acompanha nessa construção, o paciente não mais se relaciona com o Outro avassalador de seu gozo (Benetti, 1996). Desse modo, o sujeito terá que elaborar novos modos 
                          de operar com o Outro, podendo aparecer novos arranjos e possíveis saídas. Em suma, a
                          função do analista é operar visando conter o gozo do Outro absoluto do psicótico, muitas 
                          vezes furando este Outro tão consistente. Essa atuação não precisa ser feita no lugar de saber, 
                          e sim em algo que o próprio paciente traz, o que é singular em cada caso. 
                           
                          "Vamos aparentemente nos contentar em passar por secretários do alienado" (Lacan, 
                          1955-1956. p. 235). Quando Lacan sublinha a questão de secretariar o psicótico, está dizendo 
                          de uma forma de manejo clínico, no qual o analista pode ser apenas testemunha de um 
                          paciente fora de um delírio constituído, ou ter a incumbência de trivializar algo do delírio que 
                          inviabilize o tratamento. 
                           
                          Se o apaziguamento do gozo é uma forma de estabilização, então podemos pensar no 
                          delírio como uma via. Assim como Freud dizia do delírio como uma forma de cura, (Freud, 
                          1911) Lacan o diz como uma "metáfora delirante capaz de estabilização". (Lacan, 1955-1956) 
                          A sistematização do delírio pode permitir ao sujeito a localização do gozo no lugar do Outro e 
                          tentar achar um sentido para tudo que retorna no Real e desorganiza seu funcionamento. 
                           
                          A obra pode ser uma via de estabilização que permita um discurso menos precário. 
                          Através de suas produções, o psicótico pode dar a estas o lugar de S1, a partir do qual uma 
                          cadeia significante pode ser construída, fazendo algum tipo de laço com o Outro. Essas e 
                          outras atividades estão em harmonia com as propostas terapêuticas dos CAPS, desde que a 
                          equipe tenha instrumentos práticos e, principalmente teóricos que as tornem possíveis. 
                           
                          É nessa perspectiva que a Construção do Caso Clínico pode ser uma estratégia que 
                          contribui com a clínica nos CAPS. É um dispositivo que propõe reunir diferentes falas sobre o 
                          paciente, por vezes inaudíveis, na forma de uma conversação clínica entre a equipe, "partindo 
                          do princípio de que a equipe que acompanha o paciente nada sabe a seu respeito". (Andrade, 
                          2005. p. 48). Assim, é um método que parte do saber do paciente, na medida em que surge o 
                          sujeito, ali onde havia somente o comportamento, como efeito da construção. Conversar sobre 
                          o caso clínico possibilita localizar o modo particular de cada um, sua clínica, sua 
                          singularidade e como ele próprio pode indicar a direção do tratamento (Viganó, 1999). 
                           
                          Desse modo, a construção do caso clínico pode ser um dispositivo facilitador para que 
                          a equipe possa alcançar o saber do paciente acerca de seu próprio tratamento, possibilitando o 
                          acompanhamento das saídas eleitas pelo próprio sujeito, com vistas ao alcance de uma 
                          possível estabilização e enlaçamento social. 
                          Rerefências bibliográficas 
                             
                            ALVARENGA, Elisa. "Estabilizações" In Curinga – Psicanálise e Saúde Mental. Belo Horizonte: EBP – MG,
                            2000. N. 14, p. 18-23. 
                             
ANDRADE, Renata Dinardi. "Discussão X Construção do Caso Clínico" In: Mental, Barbacena: unipac Editora,
                            2005. Ano III n. 4. Junho. P. 45-57. 
                             
                            BENETTI, Antônio. "Interpretação na psicose ou manobras da transferência?" In: Opção Lacaniana, São Paulo:
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                            FREUD, Sigmund. (1911) Notas psicanalíticas sobre um relato autobiográfico de um caso de paranóia. Edição
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                            _____________ (1929) O mal estar na civilização. Edição standard das obras psicológicas completas de 
                            Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, v XXI, 1980. 
                             
                            LACAN, Jacques. (1955-1956) O Seminário, Livro 3: As Psicoses. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1988. 
                             
                            _______________ (1957-1958) De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose. In: Escritos. 
                            Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998. 
                             
                            _______________ (1969-1970) O Seminário livro 17: O avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.,
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                            QUINET, Antônio. Psicose e Laço Social. Rio de janeiro: Jorge Zahar Ed., 2006. 
                             
                            VIGANÓ, Carlo. "A construção do caso clínico em Saúde Mental". In: Curinga – Psicanálise e Saúde Mental. 
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                            ZENONI, Alfredo. Le spectre de la chronicite. CliniCAPS – Impasses da Clínica. Revista nº 4. 2008. 
                             
                            __________ (2000) "Qual a instituição para o sujeito psicótico?" AbreCampos – Revista de Saúde Mental do
                            Instituto Raul Soares. Belo Horizonte: Ano 1, nº0, junho p. 12-31.                             
                           
                          Recebido em Julho de 2011 
                            Aceito em Setembro de 2011 
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