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                        O convite para participar da VI Conversação clínica me faz produzir sobre minhas 
                          inserções institucionais mais recentes e interrogar sobre as consequências dos limites do 
                          simbólico na nossa prática. 
                           
                          Constatamos que na clinica, cada vez mais, nos deparamos com sujeitos que nos 
                          chegam sem uma questão. Eles nos são trazidos pelas famílias, encaminhados pelas escolas 
                          (com seus termos de condicionalidade), pelas instituições em geral por motivos que, muitas 
                          vezes, não lhes causam sofrimento. As crianças e adolescentes, contudo, têm nos mostrado as 
                          soluções que têm encontrado para além do simbólico, o que muito têm nos surpreendido. São 
                          sintomas que não encontram, no laço social, uma forma de articulação com o Outro. Sintomas 
                          que são denunciados pelo Outro que, frequentemente, não querer se implicar no 
                          enfrentamento do caso. O Outro denuncia como algo está fora de ordem, mas o sujeito não se 
                          vê representado pelo sintoma, e nem mesmo faz uma tentativa de vinculação. 
                           
                          Os sintomas atuais colocam em primeiro plano, como nos indica Miller, uma vertente 
                          da linguagem que toca a pulsação mais intima da experiência analítica. "Lá onde a palavra 
                          perde sua função de comunicação, de informação, para não ser outra coisa que a palpitação de 
                          um gozo." Nessa direção, o simbólico deixa de se articular ao sentido e sua função passa a ser 
                          a de aparelhar o gozo, quer dizer, dar-lhe corpo, substância, materialidade. 
                           
                          Quando nos apoiamos no seminário sobre o sinthoma, percebemos que o Nome-do-Pai 
                          trazia a crença humana de que há sentido no real. A partir do momento que o Nome-do-Pai 
                          deixa de ser a garantia de que, gozo e sentido não se separam, surge o Outro barrado, ou seja,
                          o Outro marcado pela inconsistência ou pela incompletude. Ao barrar o Outro, Lacan aponta
                          para a impossibilidade de uma relação de alteridade estabelecida nos moldes de problemasolução. 
                           
                          Nem todo problema encontrará uma solução no campo do Outro; trata-se de um 
                          ordenamento simbólico repleto de restos que são excluídos de qualquer sentido. Há a 
                          constatação de que as respostas do Outro são insuficientes. 
                           
                          É possível identificar um percurso que vai de uma clinica lacaniana que tem o Nomedo- 
                          pai como garantia simbólica suficientemente consistente, que diferencia neurose e psicose 
                          com base no Nome-do-Pai e sua foraclusão, para a clínica lacaniana que reconhece a 
                          inconsistência do Outro, vacilando profundamente o modo como o sujeito constrói uma 
                          resposta para sua existência. A inexistência do Outro condiciona, nos diz Miller (2003), o 
                          sujeito a se tornar inventor. O sujeito é particularmente levado a instrumentalizar a linguagem. 
                          O termo invenção está profundamente ligado à noção de que o Outro não existe, 
                            profundamente ligado à idéia de que o Outro é uma invenção. 
                            O meu convite hoje é para conversarmos sobre a questão que o caso Lucas suscitou 
                            em mim: qual a invenção que tem ancorado este sujeito? Poderíamos pensar que o modo 
                            como Lucas se apresenta na entrevista seria uma invenção, uma maneira de fazer uso da 
                            linguagem? 
                          
                            
                              
                                Isso eu não posso falar não, sô. 
                                  Tem nem como falar não. 
                                  Tem nem como falar isso não, sô. 
                                  Não lembro não. 
                                  Não lembro. Tem um tempão 
                                  A droga acaba com os neurônios. 
                                  Não! Aí não, né? Esquecer onde eu morava? 
                                  Não tem como falar não. 
                                  Tem um tempão já. 
                                  Não sei o que ele tava fazendo não. 
                                  Não sei nada da vida dela não, sô! 
                                  Não gosto, não converso, não faço nada. 
                                  Lógico que não! 
                                  Nada. Não gosto de nada 
                                  Não posso explicar isso não. 
                                  Não gosto de conversar. 
                                  Não posso explicar isso não 
                                  Tenho (lembrança) não, sô. 
                                  Nem lembro não. Tem um tempão. 
                                  Não lembro do passado não, sô. 
                                  A droga comeu os neurônios. 
                                  Eu não gosto de comentar não. 
                                  Não penso no futuro não. 
                                 
                             
                             
                          Ao me deparar com essa pulsação cadenciada fui remetida a algumas discussões com 
                            Célio Garcia, em que ele propõe uma leitura do livro Bartleby, o escrivão de Herman 
                            Melville (1819-1891), onde o protagonista, que é escrivão, introduz a frase "preferiria não" às 
                            demandas do chefe do escritório em que trabalhava. Uma escuta apressada poderia tomar o 
                            "preferiria não" como marca de abandono, de desistência, como mero enfrentamento ou 
                            demonstração de revolta. 
                             
                            No entanto, Célio entende que o "preferiria não" apontava para uma invenção a ser 
                            explorada - invenção comentada por Miller como "uma criação a partir de materiais existentes 
                            - uma bricolagem." O desafio colocado seria sair do campo relacional do laço social, 
                            relacionamento social, da inserção, para entender o enunciado de modo literal. Ele diz 
                            "preferiria não" e não "prefiro não" ou "não me importo". A resposta de Bartleby ao chefe, 
                            não nega o predicado; antes, afirma um não-predicado: ele não diz que não quer fazer, diz que
                            prefere não fazer tal coisa, reservando-se a possibilidade futura, mantida em suspenso. Uma
                            leitura apressada da resposta de Bartleby, poderia nos remeter, nos adverte Célio, a uma 
                            posição marginal que não leva a nada. 
                             
                            Trabalhando o caso Lucas nessa perspectiva, pensamos que ao responder com várias 
                            modalidades linguísticas às perguntas da entrevistadora, ele não recusa o dispositivo da 
                            entrevista. Não se nega a dizer e serve-se do simbólico para dizer que "tem nem como falar 
                            isso não". Quando interrogado sobre outras coisas ele nos mostra que não sustenta uma 
                            posição débil. Explica-nos muito bem o que estava fazendo ali, e o que tem que fazer para sair 
                            dali, e considera a complexidade que é "mudar de vida". Utiliza de certo cinismo ao enfatizar 
                            que "é obvio" que ele sabe de muitas coisas e que não está em uma posição de não saber: 
                            "Não, aí não, né!? Esquecer de onde eu morava?" 
                             
                            É importante observar que a posição de Lucas não faz apelo à tolerância, nem tão 
                            pouco à inclusão. Lucas não me parece adepto de uma "pedagogia corretiva". Ele se mantém 
                            firme na posição em que se instalou. 
                             
                            Célio Garcia nos convida a imaginar as variedades desse gesto no espaço público 
                            atual. Os chamados espaços da contemporaneidade. Há grandes oportunidades de uma nova 
                            carreira aqui! Junte-se a nós. 
                             
                          Ou também: Descubra as profundezas do seu verdadeiro eu, encontre a paz interior! 
                          Ao que Lucas parece responder "aí não, né", ou como escutamos na voz dos meninos: "me 
                          inclui fora dessa", e assim por diante. 
                          Assim, o "tem nem como falar isso não", seria o gesto de Lucas que poderia ser 
                          escutado como "o que resta do complemento da Lei quando seu lugar é esvaziado de todo 
                          conteúdo superegóico obsceno"? 
                           
                          Laurent (2011) nos adverte que a estrutura de linguagem não mais dá conta de tocar o 
                          sujeito em sua invenção, no entanto é preciso, como acompanhamos o esforço de Ana Lydia, 
                          insistir por meio da fala, pois não temos outro instrumento para articular essa invenção. 
                           
                          A condução da entrevista demonstra o cuidado em "não procurar" algo que saciaria 
                          um furor terapêutico, mas em poder encontrar e se interessar pela invenção deste adolescente. 
                           
                          Laurent (2011) enfatiza que o fato do tratamento analítico se orientar pelo Real não 
                          quer dizer que ele se oriente para o real. Antes se trata de que o real seja o que dirige o 
                          tratamento, assim como o que dirige nossas vidas e nossas instituições. E há que saber 
                          localizá-lo e lidar com ele a cada vez, sem deixar-se aspirar por completo. E nos orienta que 
                          se por um lado, ninguém mais sabe do que ele ou ela fala, por outro, o único limite, ou seja, o 
                          único momento em que toda essa atividade ganha um sentido, é o momento de angustia. Ou 
                          seja, o ponto de real só é alcançado quando o sujeito dá testemunho de sua angústia. 
                           
                          Extraímos o momento da entrevista em que supomos que foi possível localizar um 
                          ponto de angustia de Lucas. 
                           
                          AL: Dá pra você me contar alguma? (do que ele não gosta na mãe). 
                          L: Dá não. 
                          AL: Por quê? Nossa você guarda muita coisa com você. 
                          L: De ruindade eu guardo mesmo. 
                          AL: De ruindade? Assim você acaba virando um cofre de ruindade, tem que soltar um 
                          pouquinho. Não tem ninguém aqui para você falar sobre essas coisas? E essas ruindades? O 
                          que acontecia? O que acontecia de ruindade? 
                          L: Ah, muitas coisas. 
                          AL: O quê? Conta uma. É difícil falar disso? 
                          L: Eu não gosto de comentar não. 
                          AL: Mas você sabe que é importante você comentar isso com a pessoa que te atende aqui? 
                          Com a psicóloga que te acompanha. É, mas é dessas coisas que te incomodam que a gente 
                          conversa. Por que lá, aqui tudo bem, tem muita gente. Mas lá, o que você for falar com ela vai 
                          ficar entre você e ela. Que o que você conversar com ela vai ficar entre vocês dois? Que ela 
                          não vai falar para ninguém? 
                          L: Ela já me falou esses trens. 
                          AL: Então, é importante você comentar, se não, só fica guardando essas coisas ruins, sendo 
                          que as coisas poderiam ser diferentes para você... Isso que você está chamando de as 
                          maldades. É assim mesmo que você chama? E desse lado das maldades tem mais alguém? 
                          Tem as professoras, tem sua mãe. Tem mais alguém que seja colocado por você? Quem? 
                          L: A polícia me confundiu com outra pessoa, com os meninos lá perto de casa. O cara fez de 
                          ruindade. 
                          AL: De novo as maldades, confundiram você com outro. Então tem as maldades da polícia 
                          também. Tem mais alguma? 
                          L: Polícia. Já apanhei demais. Meu irmão também estava envolvido. 
                          AL: Seu irmão? A polícia pegou seu irmão e você apanhou também? 
                          L: Foi. Covardia demais. 
                          AL: Covardia? 
                          L: É, bateu em nós. Deu tiro lá. 
                          AL: É, algumas vezes você foi confundido com outra pessoa. E quase pagou o pato. 
                          L: Quase. 
                          AL: Falaria que essas são as maldades, é? E teve mais alguma coisa que aconteceu com você? 
                          L: Não sei, porque se não eu vou morrer lá. 
                          AL: Alguém já morreu? Porque iria acontecer isso com você, iriam dar um tiro para o seu 
                          lado? 
                          L: O cara chegou lá na boca e deu um tiro para o meu lado. 
                          AL: Ah é? Mas ele sabia o que estava fazendo? 
                          L: Sabia o que estava fazendo, ué. 
                          AL: Você acha que ele tinha algum motivo para fazer isso? 
                          L: Ele gostava de incomodar, ué. Mas posso buscar um revolver e matar ele. Lógico, ele me 
                          matou e eu vou matar ele. 
                          AL: Mas ele te matou? 
                          L: Não, se ele me matar, vou matar ele... Se não eu vou morrer. Não matou porque fui 
                          acautelado lá no CEIP. 
                          AL: Bom, então agora já são três maldades. Tem mais alguma? 
                          L: Ah, matar os outros lá, ué. 
                          AL: Como que é? 
                          L: Dá uma briga e ter que matar os outros. Eu fui lá, mas ele não tava lá não. 
                          AL: Agora você está falando das suas maldades? 
                          L: Isso. 
                          AL: E que cara que é esse, que você quer matar? 
                          L: Um cara lá. 
                          AL: Que cara? Que ele fez para você? 
                          L: Queria me dar facadas. 
                          AL: Então essa é uma maldade, ele queria te dar facadas. 
                          L: Por isso fui atrás dele. 
                          AL: Bom, dessas quatro situações que você me contou, tem sempre alguém te ameaçando e 
                          você se sente ameaçado e acha que a única solução é acabar com a pessoa. 
                          L: É lógico, vai tirar a minha vida. 
                          AL: Alguém querendo tirar a sua vida e você vai e tenta tirar a vida da outra pessoa. 
                          L: É lógico. 
                           
                          O que para Lucas é lógico? Qual a lógica de Lucas? 
                          A pontuação fundamental que nos guia, segundo Laurent (2011), é a da angustia, seja 
                          da alucinação, seja do acting-out, é aquela que assinala os momentos nos quais a enunciação 
                          vem se inscrever num texto do qual, de repente, ela emerge quando, "normalmente", ela não 
                          deveria ter podido fazê-lo. E podemos perguntar do que se trata quando Lucas nos diz:"ele me 
                          matou eu vou matar ele". 
                           
                          Minha leitura é que Lucas nos mostra sua lógica. Ele se dispõe a "comentar" dessas 
                          coisas que ele "não gosta de comentar não". Nos diz então, do que o aflige. Sejam estas 
                          maldades ou bondades, ele nos diz que a aflição é sempre um ponto difícil de dizer. Algo do 
                          qual sempre faltam palavras. Principalmente para Lucas que talvez tenha tido poucas 
                          oportunidades de dizer desta falta de palavras, com as suas palavras. Podemos acompanhar 
                          que o momento mais confuso da entrevista, é quando ele tenta dizer. É um momento difícil de 
                          entender. Nestes momentos onde muitos adolescentes se exibem, mostrando ao público suas 
                          "ruindades", Lucas se embaraça. Ele nos mostra que é difícil para ele falar "não tem como 
                          falar isso não, so" e que talvez esta seja sua invenção, sua forma de fazer um laço, mesmo que
                          precário, com o Outro. Um novo laço como o produzido por Bartleby e havemos que escutalo
                          mesmo com toda a dificuldade de reconhecer o que ele esta falando. Talvez seja tão difícil
                          reconhecermos, (como os autores se debateram com a posição de Bartleby) por ser um laço
                          que não conhecemos, não é nossa forma de enlaçamento. Penso que devemos estar atentos a
                          armadilha de, ao não entendermos o que Lucas e tantos outros jovens estão dizendo, cairmos
                          no equivoco de tentar compreende-los.  
                          Referências Bibliográficas: 
                             
                            GARCIA, Celio; "Laço social e Lei: eu preferiria não!" testo inédito apresentado no Núcleo de Psicanálise e
                            Direito. 
                             
                            LACAN, J. O Seminário, Livro 23: O Sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007. 
                             
                            MILLER "A invenção psicótica" in: Opção Lacaniana nº 36, São Paulo 2003 
                             
                            MILLER, J.- A. Seminário de Orientação Lacaniana: Coisas de Fineza. 2009, (divulgação interna da EBP) 
                             
                            LAURENT, Éric "O programa de gozo não virtual" in: Correio Revista da Escola Brasileira de Psicanálise, São
                            Paulo, abril, 2011.  
                          Recebido em Julho de 2011 
                            Aceito em Setembro de 2011 
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