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                          Pretendemos desenvolver neste artigo um relato de  experiência a partir do projeto de extensão “Tecendo a Rede: uma proposta de  formação no campo da saúde mental a partir da articulação entre universidade,  serviço e comunidade”. Este projeto iniciou em 2010, através da parceria  firmada entre o curso de psicologia da Pontifícia Universidade Católica de  Minas Gerais (PUC Minas) unidade São Gabriel e a Prefeitura de uma cidade da  região metropolitana de Belo Horizonte, tendo como ação central, o  desenvolvimento da metodologia da construção do caso clínico através da  conversação clínica.  
                          O objetivo de nossa reflexão neste artigo será a experiência  vivenciada por nós no Centro de Atenção Psicossocial Infanto-juvenil (CAPSi) do  município supracitado. Neste serviço desenvolvemos a prática de Acompanhamento  Terapêutico (AT) realizada por um aluno bolsista. Os casos para essa modalidade  de atendimento são encaminhados pela equipe a partir de necessidades relativas  à cada situação. Esses casos geralmente mobilizam uma rede de serviços, que  deve estar articulada para proporcionar uma melhor assistência. Nessa  perspectiva, além do AT, o estagiário também é responsável por acionar os  serviços que compõem a rede do paciente. Uma vez acionada essa rede  propomos uma reunião com os profissionais destes serviços para realizarmos a  construção do caso clínico a partir da conversação clínica. 
                          Compreendemos tal construção como uma metodologia clínica de  intervenção no campo da saúde mental, a qual tem como objetivo direcionar as condutas  realizadas pelos profissionais do serviço, mediante um caso que lhes cause  impasse. As dificuldades na condução de um caso podem servir como motor para  uma prática singular demandada, já que a equipe é colocada a refletir e  discutir conhecimentos e conduções até então petrificados, promovendo assim, o  surgimento de algo novo e revelador acerca do sujeito. Desse modo, entendemos  que essa metodologia implica em que a equipe assuma uma posição de não saber em  relação ao paciente.  
                          Viganó (1999) traz considerações relevantes sobre a  construção do caso clínico e a importância da participação de outros atores.  Para o autor:                           
                          Trata-se de juntar as narrativas dos  protagonistas dessa rede social e de encontrar seu ponto cego, encontrar aquilo  que eles não viram, cegos pelo saber e pelo medo da ignorância. Este ponto  comum, a falta de saber, é o lugar do sujeito e da doença que o acometeu. A  construção do caso consiste, portanto, em um movimento dialético em que as  partes se invertem: a rede social coloca-se em posição discente e o paciente na  posição de docente. (VIGANÓ, 1999, p. 56).                           
                          Mendes e Silva (2010) consideram que a construção do caso  clínico não é um exercício acadêmico, e segundo Viganó (1999) é uma obra de  alto artesanato, onde o saber técnico-científico entra apenas como uma  pré-condição. Neste sentido, só quando o paciente começa a falar de sua  história é que aprendemos o caminho de sua subjetividade. Isso implica em  operar com o saber do paciente e não com um saber sobre o paciente. Desta  forma, construir o caso clínico é colocar o paciente a trabalho, registrar seus  movimentos e recolher as passagens subjetivas que contam, para que a equipe  esteja pronta para escutar a sua palavra quando esta vier. É compor a história  do sujeito e de sua doença, delimitando os fatores que precipitaram a  patologia, buscando reconhecer os pontos mortíferos, os pontos de repetição, os  tratamentos realizados, e as saídas que o próprio sujeito tem desenvolvido para  lidar com o seu sofrimento.  
                          Para refletirmos sobre nossa prática, escolhemos a  construção do caso clínico Davi. A partir dessa construção pretendemos discutir  o papel e as consequências do discurso psiquiátrico contemporâneo, no  tratamento de crianças na rede de serviços - composta pelos serviços de saúde  mental, assistência social e escola- e, evidenciar que a construção do caso  clínico pode incluir outras formas de atuação/pensamento que possibilitam o  aparecimento do sujeito.  
                          O que temos vivenciado hoje na saúde mental, dentre outros  aspectos, é uma hegemonia do discurso psiquiátrico, baseado na perspectiva do  Manual Diagnóstico e Estatístico das Pertubações Mentais (DSM) que passa a  ordenar os saberes presentes numa equipe. De fato, assistimos uma apropriação  pela maioria dos profissionais do saber psiquiátrico, de forma muitas vezes  superficial, e de modo a preencher talvez, algumas lacunas em sua própria  formação.  
                          Quando se trata de um CAPS infanto-juvenil isso é ainda mais  preocupante, pois é essencial para as crianças o aporte advindo dos atores  sociais e da família, relativas a um conjunto de expectativas que são referidas  à sua formação e ao seu desenvolvimento. No entanto, quando o discurso  psiquiátrico é o saber hegemônico, nota-se uma determinação das  potencialidades, e o que a família e demais atores sociais (escola, assistência  social, etc.) podem esperar do futuro da criança a partir da classificação dos  quadros clínicos.                           
                          CONSIDERAÇÕES SOBRE O DSM                          
                          
                          No texto: “A paixão nos tempos do DSM: Sobre o recorte  operacional do campo da psicopatologia” Pereira (2000), discorre sobre os sistemas  operacionais de classificação dos transtornos mentais, cujo paradigma  contemporâneo é o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais 4º  Ed. (DSM-IV).  Esse autor afirma  que a psiquiatria a partir da década de 1960, defrontou-se com dificuldades em  seu percurso para se fazer reconhecer como disciplina médica de pleno direito,  visto que sua legitimidade científica era contestada vigorosamente. Assim, a  ausência de consistência de suas categorias diagnósticas não somente conduzia a  um problema de concordância entre os diagnósticos propostos pelos próprios  psiquiatras, como também ao questionamento de sua eficácia terapêutica. Pereira  (2000) assinala que a psicopatologia constituía assim:                           
                          “O próprio terreno sobre o qual se  desenrolavam os combates quanto à legitimidade da psiquiatria (...). As  definições dadas por clínicos e pesquisadores provindos de horizontes  epistemológicos diferentes tendiam, naturalmente, a recortar seus objetos  teórico-clínicos segundo os pressupostos próprios de cada disciplina, deixando,  assim, grande margem à confusão terminológica e à incompreensão mútuas”  (PEREIRA, 2000, p. 123).                           
                          Com o objetivo de organizar as concepções científicas, acerca  do sofrimento mental, o DSM foi elaborado pela Associação Psiquiátrica  Americana (APA). Este manual possibilitou um mínimo de entendimento entre os  diferentes ramos do conhecimento que se encontravam no campo heterogêneo  chamado psicopatologia, através de uma linguagem universal. Deste modo, a  criação do DSM surgiu como possível solução dos desacordos diagnósticos e  terminológicos dos transtornos mentais.  
                          De acordo com Pereira (2000), o surgimento da terceira  edição do DSM - o DSM-III- em 1980, instituiu um divisor de águas na  psiquiatria, visto que alterou a concepção da prática e da pesquisa  psiquiátrica, na medida em que esse se propôs como um sistema operacional e  ateórico. Essa classificação dos ditos transtornos mentais, ao mesmo tempo em  que se empenhava em evitar os impasses entre as variáveis abordagens  psicopatológicas, tinha como finalidade constituir um sistema de classificação  que se debruçasse apenas sobre dados objetivos e observáveis. Dessa forma, essa  classificação rejeita as abordagens que não se debruçam em fatos clínicos  observáveis e contestáveis. Pereira (2000) afirma que:                           
                          “[...] resulta deste estado de coisas  uma concepção cada vez mais naturalizada do padecimento mental, de modo que as  dimensões históricas, culturais, subjetivas e existenciais nele implicadas,  passam a ser vistas como irrelevantes ou perigosamente inefáveis – meros  resquícios de metafísica aguardando pela redução científica ao plano  neurobiológico, único nível explicativo não-metafórico desses fenômenos” (PEREIRA,  2000, p. 119).                           
                           A psiquiatria, portanto, passa a ter um conhecimento dito  ateórico, baseado na descrição dos sintomas e substitui o vocábulo doença para  o termo disorder (transtorno)  para designar as categorias diagnósticas. O autor salienta que tal designação não confere nenhuma  especificidade ao quadro clínico em questão, contudo preenche uma função  retórica que é necessária ao bom funcionamento do sistema de classificação. Desta  maneira, busca-se “idealmente tratar apenas dos problemas nosográficos  privilegiandose a descrição mais objetiva possível dos quadros  sintomatológicos, deixando-se de lado os questionamentos etiológicos e dos  supostos mecanismos patogênicos” (PEREIRA, 2000, p. 127).  
                          A partir da intervenção direta sobre os sintomas a ênfase no  tratamento do portador de transtorno mental se desloca da análise dos sujeitos,  definidos por sua singularidade, para o tratamento de casos que se constituem  por sua semelhança nos sintomas.   
                          Embora o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais  afirma não manifestar preocupação com as causas dos transtornos mentais, esse  mesmo sistema, atribui uma causalidade orgânica para explicação da origem dos  sintomas psicopatológicos. Percebe- se, nesse contexto, o discurso da  disfuncionalidade orgânica realizada pelos psiquiatras, com o intuito de  alcançar um tratamento que restitui um grau de adaptabilidade do sujeito à  sociedade.  
                          Esta nova concepção dos diagnósticos reflete em uma clínica  das classificações, caracterizadas no patológico, que perpassa pelo discurso  objetivo, hegemônico e pragmático proposto pelos manuais. Estes, a partir de uma intervenção direta  sobre os sintomas, orientam a classificação e o tratamento das doenças  psicopatológicas como universais. Sendo assim, as abordagens que tratam dos  fenômenos psicopatológicos, por meio de métodos não experimentais ficaram no  plano secundário, e de acordo com Pereira (2000), qualquer tentativa de  absolutizar um discurso, no intuito de explicar de forma hegemônica o padecer  humano, é algo perigoso e merece oposição e crítica.   
                          Deve-se considerar ainda que esse manual é um sistema que  permite diagnósticos em planos como, clínico, evolutivo e sócio-familiar, ao  mesmo tempo, trabalha com critérios de inclusão e exclusão, para que se chegue  a um diagnóstico definitivo. Somado a isso, o que proporciona certa potência ao  DSM, é o fato de possuir um caráter provisório e aberto a revisões de acordo  com os debates e avanço da ciência.   
                          Segundo Pereira (2000), é o diagnóstico que dirige as decisões  quanto ao tratamento, e qualquer erro nessa matéria, pode acarretar graves  conseqüências para o paciente e para o médico. Dessa maneira, a constatação de  uma doença constitui um caminho arriscado a estes indivíduos, pois a nomeação  de um diagnóstico pode ser uma nova maneira de o sujeito se assumir perante o  mundo.  
                          No entanto, esta forma de racionalidade do DSM que  sob o argumento de pragmático, arrasta para debaixo do tapete, tudo aquilo que  poderia tornar mais complexa a discussão no campo da psicopatologia, não foi  indiferente ao campo da psicopatologia infantil.  
                          Uma das  características mais marcantes desse manual, no que se refere à psicopatologia  da infância, é o desaparecimento do diagnóstico de psicose infantil. Desse  modo, o termo psicose infantil e todo complexo debate travado entre diversos  saberes perde espaço para o estabelecimento de um diagnóstico, que sob a  denominação de “Transtornos Globais do Desenvolvimento” abarcam uma série de  sintomas, caracterizados por um comprometimento severo e invasivo em diversas  áreas do desenvolvimento, incluindo habilidades de interação social,  comunicação, interesses e atividades esteriotipadas.   
                          Dentro deste amplo espectro de comportamentos, são colocados  variados transtornos dentre eles: o Transtorno Autista, Transtorno de Rett,  Kleffner-Landau, Asperger, entre outros. Um dos problemas gerados, é relativo  ao fato de não haver qualquer preocupação quanto ao lugar ocupado pela criança  no contexto familiar e social, o que impede uma diferenciação em relação ao que  pode ser da ordem de uma disfunção orgânica, e aquilo em que não há uma  especificação mais clara disso. Assim, ao supor uma determinação genética para  todos os transtornos, mesmos para aqueles em que não há nenhum indício  comprovado, como é o caso do Transtorno de Asperger, esse manual continua  afirmando que há, e colocando sob a mesma rubrica, diferentes diagnósticos,  desconsiderando um posicionamento que a prática clínica nos chama a ter, aquele  que diz respeito ao reconhecimento de que “nós humanos estamos situados em uma  frágil fronteira entre os automatismos neurofiosiológicos e a variabilidade  aberta da linguagem, onde é preciso saber reconher até onde vai um e outro”  (JERUSALINSK,  2011, p. 234).                            
                          De fato, para um manual que se mantém na perspectiva de  sustentar a qualquer custo uma suposta objetividade, propor uma causalidade  orgânica, acaba por priorizar o funcionamento  cerebral, no exercício de suas habilidades cognitivas e instrumentais. Nesse  sentido, qualquer questão relativa à subjetividade é negligenciada, já que esta  depende da interpretação por parte do paciente e do clínico inerente ao  processo de tratamento. (BERNARDINO, 2011)   
                          Essa discussão presente em vários autores esteve presente em  nossa prática quando em nosso projeto realizamos a construção do caso clínico  de Davi.  
                          Passemos,  então, ao relato de nossa experiência:                           
                          O QUE O CASO NOS ENSINA                          
                          Davi foi acolhido no Centro de Atenção  Psicossocial Infanto Juvenil (CAPSi) em Julho de 2009, quando tinha oito anos  de idade. Na ocasião, a criança fora encaminhada pela diretora da escola por  apresentar dificuldades de relacionamento interpessoal, interesse restrito a um  determinado assunto, agitação e impaciência quando contrariado. A queixa  principal da escola, era a respeito da desatenção da criança, já que este se  distraía frequentemente, desenhando animais em seu caderno. Como consequência,  não copiava a matéria do quadro e não manifestava interesse em apreender outros  assuntos que não convergissem para seu interesse por animais. O brincar do  paciente, segundo relato da escola, era de colocar-se como um predador, pois  colocava suas mãos em forma de garra, e seu repertório envolvia histórias e  fatos acerca de animais. Não demonstrava interesse em brincar com a maioria  dos alunos, mas também não se isolava totalmente, pois se envolvia com um ou  outro.  
                          No período em que foi acolhido pelo serviço, o paciente residia  somente com sua mãe. Esta apresenta um quadro de epilepsia desde a  adolescência. Davi presencia essas crises e manifesta significativa preocupação  com essa condição materna, no decorrer dos atendimentos realizados pela equipe  de referência do caso, (psicólogo, psiquiatra, terapeuta ocupacional e  acompanhante terapêutica). Davi relata que sua mãe desmaia e passa mal sempre.  Apesar dessa fragilidade, a mãe demonstra grande disponibilidade para o filho,  tanto no que se refere aos cuidados cotidianos com a criança, quanto em sua  participação no tratamento.  
                          Em relação ao pai, a genitora relata que ele tinha  envolvimento com tráfico de drogas e havia suspeitas de pedofilia. Diante  desses fatos, o genitor saiu de casa antes do nascimento da criança. Porém, registra  o filho. Vale ressaltar, que todos os relatos acerca do pai são ditos pela mãe  de Davi.  
                          Conhecemos  Davi em maio de 2010, por meio da solicitação da coordenadora do CAPSi e da  psiquiatra que acompanhava o caso. Davi, já havia sido assistido por uma  estagiária que realizava Acompanhamento Terapêutico (AT), para essa aluna, a  equipe demandou que nos AT’s fosse trabalhado as potencialidades manifestadas  pelo paciente, com o intuito desse obter um bom desempenho escolar. Porém, para  a nova estagiaria, a equipe solicitou o AT, não só para dar continuidade ao  trabalho realizado, mas também, para compreender acerca da hipótese diagnóstica  de Síndrome de Asperger realizada pela psiquiatra, uma vez que pelos  relatos da equipe, o paciente demonstrava interesse quase que somente a  aracnídeos, contato social restrito e potencial intelectual significativo.   
                          Nos primeiros atendimentos com a equipe de referência, Davi  era considerado de difícil abordagem, quando questionado sobre informações  pessoais ou do cotidiano, o paciente inseria o tema de seu interesse, isto é,  os aracnídeos, “ignorando” as intervenções dos profissionais e tampouco  estabelecia contato com eles.  
                          No decurso do atendimento, ainda com a equipe de referência,  o paciente relatava detalhadamente a toxicologia, o tamanho dos animais em  centímetros, partes do corpo, formas e hábitos dos aracnídeos. Quando  questionado sobre os humanos, Davi apresenta um discurso bizarro e  desorganizado.   
                          A partir dos sintomas descritos, a médica psiquiatra,  referência do caso, estabeleceu, com o consentimento da psicóloga e terapeuta  ocupacional, o Transtorno de Asperger como hipótese diagnóstica, a  partir dos critérios do DSM-IV. Esse manual considera o Transtorno de Asperger  como um transtorno do espectro do autismo, uma vez que o indivíduo apresenta  prejuízo qualitativo na interação social, falta de reciprocidade emocional ou  social, dificuldades em processar e expressar emoções, dificuldades com  mudanças, perserveração em comportamentos estereotipados e, sobretudo,  manifestar interesses específicos e intensos em determinado conteúdo. Esses  critérios, no entanto, podem ser conciliados com o desenvolvimento cognitivo  normal ou elevado. Por isso o Transtorno de Asperger, de acordo com o DSM-IV,  diferencia-se do autismo clássico por não comportar atraso global no  desenvolvimento cognitivo ou da linguagem do sujeito.  
                          De fato, durante o estudo do prontuário, antes de ser  iniciado o AT, percebemos que as conduções dos profissionais em relação a este  caso, estavam pautadas na presença e ausência dos sintomas descritos no DSM-IV.  Podia-se notar através do prontuário, que alguns profissionais  acompanhavam o caso repetindo em seus registros, a presença ou não dos sintomas  descritos nesse manual, e muitas vezes, desconsiderando a história do paciente  e o percurso realizado desde o início de seu tratamento na instituição. Dessa  forma, com o intuito de aprender, a estagiária questiona a supervisora de campo  em relação ao posicionamento dos profissionais frente ao caso, o que foi acolhido  pela equipe, resultando na demanda para construção do caso clínico.  
                          A construção  do caso clínico de Davi ocorreu a partir de duas conversações clínicas, que  juntamente com a realização dos acompanhamentos terapêuticos, proporcionou um  olhar inédito sobre o paciente, surpreendendo, tanto a acompanhante  terapêutica, quanto alguns membros da equipe.   
                          No primeiro encontro com a equipe o caso foi apresentado  pela antiga técnica de referência e pelos atuais técnicos, e discutindo-se com  os outros membros da equipe do CAPSi: coordenadora e estagiários do projeto Tecendo  a Rede, além da pedagoga da escola freqüentada por Davi. Todos que se  manifestaram colocaram suas impressões do caso, entendimento e sugestões para o  tratamento.  
                          Foi possível perceber nessa construção, que os profissionais  consideraram de forma bastante positiva o percurso de Davi no tratamento, e que  o Acompanhamento Terapêutico teve um papel fundamental no avanço que a criança  apresentou, no que diz respeito ao aprendizado dos conteúdos escolares, da  interação social com os técnicos e com colegas de escola, bem como a inclusão  de outros temas relativos a sua história, não ordenados pelo interesse em  animais.  
                          No entanto, era interessante que embora a equipe  reconhecesse a importância do trabalho do AT, e toda composição subjetiva de  Davi presente neste trabalho, do contexto familiar e das relações parentais, em  vários momentos da construção do caso, o discurso psiquiátrico oferecia, de  forma privilegiada, as determinações das possibilidades futuras da criança,  orientadas não pelo avanço que ela apresentava, mas pelos limites que a  classificação do quadro coloca.  
                          Desse  modo, foi possivel depreender dessa contrução, três pontos importantes:                           
                          
                            a)  Davi é percebido como um autista de elevado  potencial intelectual. A orientação é que ele trabalhe os conteúdos da escola a  partir dos animais, pois ele tem interesses extremamente restritos, conforme o  quadro clínico descreve. Desse modo, o tratamento deve ser conduzido no sentido  de orientar Davi cognitivamente a se interessar por outros conteúdos a partir  de seu interesse por animais, pois ele não poderá se desenvolver de outra  forma;   
                            b)  Ele será sempre um menino com transtorno.  Não há expectativa que Davi se cure, mas ele pode se adaptar à vida social;  
                            c) Ele não irá desenvolver uma interação social  que o permite ter uma reciprocidade com o outro. Nesse sentido, sua comunicação  é quase um monólogo, ou seja, não é uma forma de interação, pois ele não se  interessa pelo que o outro diz, já que não consegue deslocar de seus interesses  auto-referidos. Nessa perspectiva, é necessário que treine uma habilidade para  se adaptar socialmente às respostas apropriadas ao contexto social.  
                           
                          Conforme dissemos, foi possível notar que o discurso  psiquiátrico contemporâneo privilegia, ancorado em um ideal de objetividade, o  diagnóstico, a partir de um entendimento dos sintomas como comportamentos,  atitudes disfuncionais, atribuídos a uma habilidade funcional que está prejudicada.  No entanto, a construção do caso clínico, possibilitou à equipe resignificar o  caso, secundarizando o discurso psiquiátrico, a medida em que algo da  singularidade deste sujeito foi tomando a cena.   
                          Foi relatado na construção, que o trabalho da AT, estava  orientado no sentido de acolher as falas da criança em relação aos bichos, como  algo indicativo de questões fundamentais para ele. Percebemos, assim, que Davi,  ao contar histórias das relações entre macho e fêmea, entre animais bons e  maus, brigas entre aracnídeos e, sobretudo, relações familiares entre mãe e  filhote, ele discorria acerca de seus conflitos, de suas dificuldades em  situar-se como filho de um casal, em que a mãe, apesar de ser disponível, é  mais cuidada pela criança do que cuidava dessa, e em que o pai, desqualificado  pela mãe, (mas não por Davi) é muito ausente em sua vida.   
                          Notamos que a criança, coloca na temática dos bichos um modo  de construir um lugar para si em relação aos pais e à diferença sexual. À  medida que o trabalho do AT avançava nesta orientação, ou seja, em apostar que  a fala dos bichos revelava sua composição subjetiva, Davi foi deixando de falar  dos bichos ou através deles para falar de si, de seus sentimentos, da falta que  sente do pai, da preocupação que tem com sua mãe e de ficar sozinho. O assunto  dos bichos de central tornou-se periférico. Na escola, passou a interagir com  os colegas, a participar de brincadeiras coletivas, além de conseguir  concentrar em outros conteúdos. A fala da AT, acerca dos avanços de Davi, era  compartilhada também por outros profissionais presentes, como sua psicóloga e  sua psiquiatra. De fato, no início da construção do caso, havia uma prevalência  do discurso psiquiátrico e pouca participação de outros profissionais. No  entanto, no decorrer da construção, a partir das mudanças salientadas, foi  possível ver que o tema dos bichos se deslocava, que a criança mostrava  interesse por outros assuntos na escola, e que ela apresentava uma interação  social. Isso permitiu um esvaziamento do diagnóstico como único norteador da  conduta dos profissionais.   
                          Na segunda reunião para construção do caso, - que se destina  a recolher os efeitos da primeira construção – a equipe apresentou algumas  mudanças importantes: a psicóloga se responsabiliza pelo caso, não apenas  aceitando passivamente o diagnóstico psiquiátrico; um psiquiatra do serviço  passa a questionar o diagnóstico anterior; além da própria psiquiatra referência  do caso, ter solicitado a AT, para que avaliasse o melhor momento de inserir a  medicação.  
                          Também neste segundo encontro a escola, a acompanhante  terapêutica e os demais profissionais, relataram uma melhora significativa do  paciente. Se antes ele não mudava de assunto, atualmente ele vem demonstrando  maior habilidade de discorrer sobre diversos temas, havendo atendimentos em que  ele não mencionava os bichos. Além disto, a escola relata que Davi, tem  ampliado suas relações sociais, e também tem melhorado seu desempenho, e  realizado as atividades proposta sem se distrair com desenhos de animais  peçonhentos ou aracnídeos, como ocorria antes. Davi expressa o desejo em ser  cientista, para poder estudar os bichos, e diz saber que para isso, é preciso  estudar outras coisas como: a matemática e o português.  
                          Avaliamos que o avanço do paciente aconteceu a partir da  interação da equipe de referência com a acompanhante terapêutica, através da  construção do caso clinico. Tal articulação proporcionou uma mudança na condução  do caso, já que no início, a direção do tratamento estava pautada no  diagnóstico do DSM-IV, estabelecido pelo discurso psiquiátrico. Com a  construção do caso clínico, aprendemos que os sintomas revelam, neste caso, uma  tentativa de construir um saber sobre seu lugar no complexo parental e,  portanto, nas relações que pode construir com os outros que compõe seu convívio  social.   
                          Essa orientação propiciou à equipe, se posicionar de forma  adequada num momento muito difícil para o paciente; quando ocorre o nascimento  de sua irmã e a ausência do Acompanhamento Terapêutico. Nesse contexto, Davi  manifestou comportamentos agressivos, dificuldade de relacionamento  interpessoal na escola e interesse restrito pelos animais. A psicóloga  referência do caso, ao perceber a piora do quadro de Davi, solicita novamente a  construção do caso clínico, com a finalidade de compreender o retrocesso do  paciente, e demanda o acompanhamento terapêutico semanal. O espaço para a  construção do caso foi primordial, já que possibilitou um recurso para que a  agressividade não fosse apenas medicada como um sintoma signo de  disfuncionalidade, possibilitando, mais uma vez, um avanço na condução do caso.  
                          Nessa última  construção do caso, a fala da coordenadora da escola foi muito importante. Ao  se questionar sobre o motivo pelo qual, Davi não se endereçou a ela, quando  ocorreu uma situação em que sua mãe desmaiou na escola, ela percebe: ele ainda  a procurava para conversar sobre bichos, porém, essa se recusava a ouvi-lo.  
                          Entretanto, no momento em que ela se  dispõs a acolher essa fala, ele volta a procurá-la para conversar, e  rapidamente desloca dos bichos para dizer de suas dificuldades e interesses. A  coordenadora então, passa a se perguntar se seria necessário fazer com que Davi  prescindisse a sua construção acerca dos animais. Em uma recente conversa na  escola, a AT e a coordenadora discutem sobre se o tema dos animais precisa ser  um assunto rejeitado pelos professores e demais profissionais que acompanham  Davi. Talvez, uma orientação seja respeitar que esse interesse, embora não mais  central, mas discretamente, possa ser dito pelo paciente, pois ele revela não  uma desadaptação ao meio social, mas sim um modo de Davi se sustentar na rede  simbólica.   
                          Os encontros para a construção do caso clínico, portanto,  propiciaram o posicionamento de alguns membros da equipe, distinto daquele em  que os sintomas são entendidos apenas como signos de disfuncionalidade que  devem ser suprimidos                           
                          REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS  
                          BERNADINO, L. M. F. (2011) “A questão  da psicose na infância, seu diagnóstico e tratamento diante do  “desaparecimento” da atual nosografia”, in JERUSALINSKY, A.; FENDRIK, S.  (orgs.) O livro negro da psicopatologia contemporânea. São  Paulo: Vialettera, pp. 205-217.  
                          ELIA, L. (2010) “Consolidar a Rede de  Atenção Psicossocial e Fortalecer os Movimentos Sociais”.  
                          Conferência Nacional de Saúde Mental. Brasília: Ministério da Saúde.  Disponível em: <http://portal.saude.gov.br/portal/arquivos/pdf/consolidarlucianoelia.pdf>.  
                          JERUSALINSKY, A. (2011) “Gotinhas e  comprimidos para crianças sem história: uma psicopatologia pós-moderna para a  infância”, in JERUSALINSKY, A.; FENDRIK, S. (orgs.) O livro negro da  psicopatologia contemporânea. São Paulo: Vialettera, pp. 231-243.  
                          MENDES, A.; SILVA, C. R. (2011) “O  Projeto de Extensão “Tecendo Redes”: perspectivas do processo de formação no  campo da saúde mental”, in BATISTA, C. B.; KIND, L; GONÇALVES, L. (orgs). Universidade  e serviços de saúde: interfaces, desafios e possibilidades na formação  profissional em saúde. Belo Horizonte: PUC Minas, pp. 360-374.                           
                          PEREIRA, M. E. C. (2000) “A paixão nos  tempos do DSM: sobre o recorte operacional do campo da Psicopatologia”, in  PACHECO, R. A. F; COELHO, N. J.; ROSA, M. D. Ciência, pesquisa,  representação e realidade em psicanálise. São Paulo: Casa do Psicólogo, pp.  119-159.  
                          RUBIM, L. M.; BESSET, V. L. (2007)  “Psicanálise e educação: desafios e perspectivas”. Estilos da Clínica,  v. XII, n. 23. Disponível em: <http://www.revistasusp.sibi.usp.br/pdf/estic/v12n23/v12n23a04.pdf>   
                          VIGANÓ, C. (1999) “A construção do  caso clínico em saúde mental”. Curinga, n.13. Belo Horizonte,  pp.56-68.    
                          VORCARO, Â. (2011) “O efeito  bumerangue da classificação psicopatológica da infância”, in JERUSALINSKY, A;  FENDRIK, S. (orgs.) O livro negro da psicopatologia contemporânea. São  Paulo: Vialettera, pp. 219-230.  
                            
                          Recebido em outubro de 2013 
                            Aceito em janeiro de 2014 
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