|
O estruturalismo como proposta de dissolução do dualismo metodológico de Jaspers
O intuito deste texto é contrapor dois paradigmas epistemológicos usados para abordar a doença mental grave. Para tanto é preciso retomar brevemente a historia do surgimento da loucura enquanto doença, o que acarreta a necessidade contextualizar a emergência do conceito de doença enquanto uma questão médica.
O que é hoje conhecido como hospital, instituição eminente médica para tratamento de doenças, nem sempre teve essa função. Essas instituições surgiram na idade média e foram criadas com o intuito de hospedar indigentes, mendigos, inválidos, loucos e também doentes. A palavra Hospital foi escolhida para nomeá-las devido a sua etimologia latina que remete à "hospedagem, hospedaria e hospitalidade" (AMARANTE, 2013, p. 22). O seu intuito principal era o exercício do princípio máximo do catolicismo, enquanto ideologia dominante da idade média, a caridade. Naquela época, portanto, o hospital não tinha nenhum intuito curativo, mas sim de hospitalidade às pessoas desprovidas com objetivo caritativo.
Esse paradigma passou por mudanças a partir do surgimento do absolutismo. Os reis absolutistas passaram a determinar a exclusão de certos segmentos sociais – por exemplo, os pobres, prostitutas e incapazes – com objetivos repressivos e de controle social. Esse movimento foi denominado de grande enclausuramento, e envolvia a internação de pessoas nos Hospitais Gerais por ordem judicial, mas também voluntariamente. Em tal instituição, o diretor geral tinha todo o poder sobre os internos.
A partir do renascimento, da época das luzes e dos ideais inspiradores da revolução francesa, os médicos, passaram a atuar nos hospitais "no sentido de humaniza-los e adequá-los ao novo espírito moderno" (AMARANTE, 2013). Esse espírito moderno era caracterizado principalmente pela primazia da Razão. Após a revolução francesa em si, com os ideais de Igualdade, Liberdade e Fraternidade, a humanidade vivenciou um momento de democratização e os seguimentos sociais que antes eram segregados nos Hospitais Gerais ganharam liberdade. Também outras instituições (como orfanatos, reformatórios, etc.) que poderiam abrigar tais seguimentos sociais foram criadas. Como consequência, os hospitais se tornaram instituições eminentemente médicas o que causou um grande avanço a essa disciplina, já que, dominando aquele ambiente, os médicos puderam agrupar as doenças e observar seu desenvolvimento. Assim, de posse do método das ciências naturais os médicos organizaram o hospital como um lugar de tratamento, mas também de ensino e pesquisa,
criando um espaço controlado, diminuído as variáveis intervenientes tentando ter contato com a doença em si. Ou seja, no hospital foi criada uma tecnologia de disciplina dos corpos que isolava as variáveis que pudessem interferir na doença, de modo que se pudesse vê-la de forma pura. É neste sentido que Foucault argumenta: "Postula-se, inicialmente, que a doença é uma essência, uma entidade específica indicada pelos sintomas que a manifestam, mas anterior a eles, e de certo modo independente deles" (FOUCAULT, 1975, p. 8).
A partir do uso desta metodologia, vários foram os achados da medicina em relação a doenças, sendo que a tática da desta disciplina foi a de abordar a doença a partir da sua etiologia, ou seja, a causa dos sinais e sintomas que eram agrupados enquanto uma sintomatologia. Desde então, um quadro nosológico, ou uma doença, era composto tanto por sua etiologia, como sua sintomatologia, a evolução e o prognóstico. Diante da etiologia, ou causa, era possível prever o tratamento, interrompendo a evolução da doença e melhorando o prognóstico. Esse tipo de abordagem foi extrapolado para alguns tipos de doença mental. Por exemplo, um tipo de demência muito comum antes da descoberta da penicilina pôde ser esclarecida como sendo a consequência da atuação da bactéria da Sífilis no sistema nervoso central. Essa demência, composta por sintomas como declínio cognitivo, alterações na personalidade, hiperatividade, alucinações, delírios, diminuição da capacidade de julgamento, perda da memória, etc., era responsável por 9% das internações de pacientes em hospitais psiquiátricos no começo do século XX (VARGAS, CAROD-ARTAL, et al., 2000). Assim, a descoberta da etiologia de tal demência, atualmente conhecida como neurossífilis, e a possibilidade de tratamento com penicilina representou um grande avanço para a neuropsiquiatria.
Esses sucessos no campo da saúde mental levaram os médicos a perceberem ganhos evidentes na transposição do modelo de abordagem da doença orgânica para a doença mental. Assim, segundo Foucault, a psiquiatria ficou adotou em relação à Doença mental a estratégia de:
decifrar a essência da doença no agrupamento coerente dos sinais que a indicam. Constituiu uma sintomatologia na qual são realçadas as correlações constantes, ou somente frequentes, entre tal tipo de doença e tal manifestação mórbida: a alucinação auditiva, sintoma de uma estrutura delirante; a confusão mental, sinal de tal forma demente. (FOUCAULT, 1975, p. 6)
Entretanto, apesar dos esforços da psiquiatria em verificar a etiologia da doença mental, seguindo o modelo das doenças orgânicas, as pesquisas sobre a anatomia cerebral dentre outras não puderam exibir achados anatomoclínicos sobre a etiologia de quadros como a demência precoce e loucura maníaco-depressiva (TEIXEIRA, 2006, p. 110). Assim é
impelida a verificar outros campos epistemológicos que permitissem enquadrar o seu problema gerando novas soluções. Um dos campos explorados para tal tarefa a teorização do filósofo Dilthey (ABBAGNANO, 2007, p. 157-159) que foi o primeiro a propor um método diferente para as Ciências Humanas ou Ciências Históricas, propondo uma subdivisão das ciências em "naturais" e "do espírito".
Com o intuito de compreender a necessidade da criação desta nova ciência, é preciso ter clareza sobre qual é o método das Ciências Naturais, de modo que possamos entender porque, segundo Dilthey, ele não se adaptava as chamadas Ciências do Espírito. Para o método das Ciências Naturais, que poderia ser chamado "técnica causal", o fenômeno seria considerado explicado uma vez fosse conhecida sua causa. A partir da causa é possível prever uma lei que rege o evento, sendo que dada causa os efeitos consequentes desta serão uniformes. Portanto, aquilo do qual se sabe a causa pode ser previsto. Assim o fenômeno seria reduzido à lei que o rege. Para Dilthey (ABBAGNANO, 2007, p. 157), o método das Ciências Naturais seria dificilmente transmutado para as ciências como a história, economia, direito, dentre outras que comporiam as Ciências do Espirito, porque "a aplicação da técnica causal a tais fatos implicaria sua redução a casos de uniformidade mecânica" (ABBAGNANO, 2007, p. 157).
Outro aspecto, para Dilthey, seria que as Ciências Naturais têm como objeto algo que se apercebe visivelmente como externo ao humano. Por sua vez, o objeto das Ciências do Espírito é exatamente o homem e suas relações, donde o homem é ao mesmo tempo o que estuda e o objeto de estudo, ou seja,
a realidade humana (...) é tal que podemos compreendê-la de dentro porque podemos representa-la sob o fundamento dos nossos próprios estados. A Natureza do contrário é muda e permanece sempre como algo externo. (ABBAGNANO, 2007)
Em função dessa diferença em relação ao objeto, na obra em que discute esse assunto (Introdução às ciências do Espírito, 1883), esse autor Alemão propõe outro método que regeria as "ciências do espírito", o método compreensível. Ele considera que o homem é parte componente do objeto que estuda através das Ciências do Espírito, portanto pode utilizar-se do processo de compreender porque tem uma amostra interna do saber que quer encontrar em sua pesquisa do humano. Desta forma propõe que o "Compreender‟ "é a descoberta do eu no tu... O sujeito do saber é aqui idêntico a seu objeto e esse é o mesmo em todos os graus de sua objetivação" (DILTHEY, 1883, p.191 apud ABBAGNANO, 2007, p. 158).
Tendo em vista este novo método, o filósofo e psiquiatra Karl Jaspers (1883–1969) percebeu que poderia abordar os aspectos psicológicos da doença mental através do método compreensivo, o que introduz a psicologia dentro das Ciências do Espírito. Mesmo assim conservou o método das Ciências Naturais para explicar os fenômenos que se manifestam no psiquismo, mas são efeitos de causas orgânicas. Então, sob a influência da Ciência do Espírito e a Ciência Natural, Jaspers (Psicopatologia Geral, 1973) propôs uma teorização do psiquismo que dividiria os fenômenos psicológicos em dois tipos, aqueles que são efeito de um processo e aqueles que são efeito de uma reação. Em função desta formulação a psicopatologia teria uma base dual que Alonso-Fernandez (1976, p. 192) afirma ser uma versão do problema corpo-alma.
Desta feita, para Jaspers, na esteira de Dilthey, todo fenômeno psicológico poderia ser acessado na tentativa de compreender seu motivo, em detrimento de explicar sua causa. A adoção do método compreensivo se detém na ideia de que os fenômenos psicológicos, estando dentro das Ciências do Espírito, não poderiam nunca ser acessados pelo método das Ciências Naturais já que, como vimos, tal método implica uma redução do fenômeno às leis que o explicam de maneira uniforme e permanente. A compreensão em Jaspers estava na dependência do conhecimento das variáveis históricas da vida e contexto no qual se insere o paciente. Uma de suas modalidades era chamada de compreensão racional. Tal tipo de compreensão seria bem construído se baseado em pontos de apoio objetivos no psiquismo particular observado. A compreensão assim constituída, apesar de conservar certa objetividade, nunca implica a criação de leis, pois haveria tantas compreensões, quanto pessoas cujos históricos gerariam parâmetros para que fosse feita a conexão compreensiva. Neste ponto, o parâmetro real e empírico da vivência daquele sujeito é preponderante em relação a qualquer conexão compreensível típico-ideal. Assim, o particular do vivido da pessoa importa mais que qualquer teoria que pretenda saber a priori sobre esse vivido.
Essa característica empírica da teoria jasperiana fica ainda mais evidente quando esse autor dá maior importância a um outro tipo de compreensão, que infere que o motivo dos fenômenos psicológicos são os estados de ânimo, ou seja, que tais estados geram os conteúdos do pensamento. Jaspers tende a dizer que a compreensão tipicamente psicológica é a empática, dado que os fenômenos psicológicos são aqueles conteúdos gerados por estados de ânimo. Nas palavras do autor "a compreensão empática é a compreensão a bem dizer psicológica do próprio psiquismo" (JASPERS, 1973, p. 368). Esse tipo de compreensão depende em grande medida de uma relação entre médico e paciente que possibilite o acesso pelo médico da experiência vivida pelo paciente. Aqui não há como acessar racionalmente o fenômeno, sendo que o clínico deve colocar o seu corpo no lugar daquele do paciente para imaginar quais tipos de conteúdo psíquico poderiam advir de certos estados de ânimo. Maior importância é dada àquilo fundamentado na vivência da emotividade, ou em algo que diz respeito à experiência do mundo através do sentimento.
O relevo dado à compreensão empática é relacionado à ideia da compreensão metafísica, na qual a abordagem pela razão é quase eclipsada, já que o mais importante é a experiência da qual a pessoa tem acesso: uma "iluminação de experiências primárias através da imagem e da ideia" (JASPERS, 1973, p. 370).
Explicitado em Jaspers o que vem a ser a Compreensão, é preciso expor quais eram os critérios deste autor para a escolha entre os métodos. Um primeiro parâmetro seria que toda causa é extraconsciente, porque aquilo que é mental ou consciente se acessa pela compreensão e não pela explicação. O que é fenômeno mental é compreensível, o que permite gerar o fenômeno mental é explicável e, portanto, extraconsciente. Por exemplo, uma alucinação dever ser explicada, pois é causada por um fato somático; a personalidade é mais provável que tenha gênese causal, pois se observa certa hereditariedade. Para Jaspers: "Nessas investigações causais, sempre havemos de pensar em que algo extraconsciente subjaz (grifo nosso) as unidades fenomenológicas, ou às conexões compreensíveis" (JASPERS, 1973, p. 366). Não poderia existir, para Jaspers, uma causa que não seja somática, ou pertencente ao campo da natureza e possa ser verificada empiricamente. Concernente ainda à ideia de causas extraconscientes, Jaspers falava de limites da compreensão e ilimitação da explicação, ponto que, mais a frente, nos dará a margem para uma primeira crítica de sua teorização. Os limites para a compreensão são resumidos por Jaspers enquanto tudo aquilo que compõe a base estrutural física do psiquismo, sendo que "o alicerce extraconsciente do psiquismo se baseia em processos somáticos" (JASPERS, 1973, p. 558); assim, se a base física for comprometida, não se pode usar o método compreensivo, sendo que os fenômenos e sintomas advindos deste comprometimento serão explicados pelo método das ciências naturais.
Assim, dentro da historia pessoal são considerados função de um desenvolvimento todos os fenômenos que se dão quando não se encontra a limitação do substrato biológico. Se na vida do indivíduo há um entrave ou acontecimento que gera fenômenos psicológicos acessíveis à compreensão, tais fenômenos psicológicos que seguem tais acontecimentos são chamados de reação. Se, por exemplo, há uma depressão após uma morte, essa depressão é reativa, está dentro do desenvolvimento e pode ser acessada pelo método compreensivo, extraído da ciência do espírito. Há uma citação no próprio Lacan que explicita como a psicogenética formula uma tese desenvolvimentista também para acessar certas psicopatologias. Ela explicita os motivos que levariam uma tal personalidade a se desenvolver como paranoica:
uma pessoa má, um intolerante, um tipo de mau-humor, orgulho, desconfiança, suscetibilidade, sobrestimação de si mesmo. Essa característica constituía o fundamento da paranoia – quando o paranoico era por demais paranoico, ele acabava por delirar. (LACAN, 1955-1956/1985, p. 13)
Em contraposição estaria o processo. Onde há uma aparente limitação para a compreensão dos motivos que nos levariam a pensar em um desenvolvimento, se impõe a explicação da causa. Assim sendo, o grande divisor de águas entre reação e processo é a etiologia e não a sintomatologia psicológica, já que como vimos acima, no exemplo dado por Lacan, um delírio poderia ser abordado como uma reação, cabendo aí, a aplicação do método compreensivo. Enfim, para resumir as diferenças entre processo e reação, construímos a tabela abaixo.
Processo X Reação
Processo
Reação Forma de apresentação do acometimento psíquico Surto, fase, episódio, acesso Reação vivencial, crise
Tipo de acometimento
Função vital extrapsíquica
Alteração do conteúdo intrapsíquico Metodologia de acesso Explicação Compreensão
Etiologia
Alteração estrutural
Malformação psicológica Terapia Somatoterapia Psicoterapia
Uma consequência deste dualismo metodológico foi a exclusão da doença mental grave do campo de investigação das Ciências do Espírito. Isto ocorria porque a maioria desses quadros apresentava delírios e outras formações que, em detrimento deste quadro de paranoia descrito por Lacan, não podiam ser compartilhados, e, portanto, compreendidos, por se tratarem de fenômenos extremamente singulares a cada indivíduo acometido pela doença. Diante da não compreensão e não compartilhamento de tais experiências pelos médicos, era,
então, suposto que a sintomatologia não acessível ao método compreensivo seria um epifenômeno psíquico da destruição de certas bases físicas cerebrais.
Assim, fora do campo de compreensibilidade e de empatia, em que se pode conceber os motivos da doença mental, eram colocados os quadros que tinham causa orgânica, ainda não sabida. Ou seja, postulava-se um processo físico como subjacente a uma alteração mental colocando sua solução em função das posteriores descobertas das ciências naturais. Ou seja, "haveria na postulação do processo, uma verdadeira demissão do pensamento, uma vez que por ela se aguarda a explicação posterior de uma causa física, ao mesmo tempo em que se renuncia a buscar a inteligibilidade do fenômeno em questão" (TEIXEIRA, 2006, p. 111)
Para além desse que já se apresenta como um grave problema para essa abordagem nos parece que a escolha pelo método compreensivo traz ainda uma série de entraves à teoria de Jaspers. Lembremos que Jaspers não prevê a criação de regras para a compreensibilidade dado que esta última só pode ser construída em relação a um recorte da realidade, que gera, de forma autoevidende, uma compreensão. A alta frequência de certas conexões compreensíveis não depõe em favor da correção de certa compreensão, muito menos o contrário: "a frequência da conexão compreensível entre o Outono e o suicídio não se confirma em absoluto, pela curva do suicídio, que atinge o máximo na primavera; daí não se segue porem que a conexão compreensível seja falsa" (JASPERS, 1973, p. 365). Não se admite, portanto, qualquer abstração em teorias perenes a partir das conexões compreensíveis.
Já havíamos mencionado que a divisão metodológica utilizada por Jaspers é tributária de Dilthey, desde então, seria interessante retomarmos os afluentes que influenciaram Dilthey a propor uma tal divisão. Comte (1798-1857), grande teórico inaugurador da ciência positivista, pensava que a ciência era dividida, sendo que dentre as Ciências Naturais haveria as ciências dogmáticas, como a fisiologia e a física, e aquelas que seriam descritivistas, a mineralogia e a zoologia ou botânica. Cournot (1801-1877) se apropria desta divisão para supor que haja de um lado as ciências com o aspecto mais perene e que tratam de teorias, e de outro, aquelas que teriam um sentido mais histórico, de coleção, sendo que Cournot "faz acompanhar cada ciência teórica do real por uma ciência histórica correspondente" (BLANCHÉ, 1983, p. 87). Dilthey por sua vez, na esteira de Cournot, então iguala a ciência do homem à história, donde se conclui por essa pequena derivação que fizemos, que as Ciências do Espírito (ou ciências humanas) teriam um grande aspecto descritivista, de coleção, renunciando ao esforço de teorização que proponha haver aspectos do homem que são estruturais e estáveis ao longo do tempo.
Aqui, torna-se importante apresentar o comentário de Lacan (1962-1963/ 2005) que ao falar da angústia, acaba por fazer um pequeno ensaio sobre o método. Ele primeiramente identifica que existe uma abordagem que seria a "via do catálogo". Nesta se reúne tudo o que se sabe e já foi escrito sobre um tema. Seria uma maneira enciclopédica, que trata do estado da arte em certo campo. Poderíamos dizer que até onde apresentamos, essa é uma das estratégias de Jaspers com o seu método compreensível. Já dizíamos que existem tantas compreensões quanto pessoas e por esse viés o nosso conhecimento psicológico acaba sendo uma coleção classificada das relações compreensivas. Também tratávamos disso acima ao localizar a descendência epistemológica da abordagem de Jaspers. Por outro lado, Lacan fala de um método acessório ao do catálogo, seria o "método do análogo" cuja versão em Jaspers descrevemos abaixo.
A abordagem adotada por Jaspers que depende da extração de sentido daquilo que é imediatamente acessado pela percepção e "consiste em pensar que há coisas que são evidentes, que, por exemplo, quando alguém está triste é porque não tem o que seu coração deseja." (LACAN, 1955-1956/1985, p. 14). Isso é facilmente refutável, como neste exemplo bastante caricato dado também por Lacan (LACAN, 1955-1956/1985, p. 15) em que ele imagina uma cena em que uma criança que apanha do pai, sendo que começa a chorar após olhar para o pai. Abordando esse fato através do método compreensivo imaginamos que o motivo do choro da criança é o tapa. Lacan, entretanto, argumenta que pode ser que uma criança chore só depois de olhar para o pai e ter a confirmação de que era uma palmada e não o carinho. Há para esse caso tantas reações quanto os discursos que permitem lê-las, tanto o é que a criança teve que recorrer ao seu Outro, o pai que lhe deu a palmada, para verificar qual o discurso que daria legibilidade àquela experiência. Ou seja, a evidência empírica não produz nenhuma referência, o que gera uma proliferação do que pode se dizer sobre um fenômeno. Donde se deriva que existam tantas compreensões quanto pessoas dispostas a construí-las; ou, tantas compreensões quanto discursos que as subsidiam. Um conhecimento assim produzido é destituído de qualquer verificabilidade e estabilidade.
Percebemos que a compreensão empática é onde a evidência empírica encontra o ápice de sua presença, o que segundo Jaspers, confere à compreensão maior estabilidade possível. Entretanto, tal compreensão depende intrinsecamente de uma especularização, se colocar no lugar do sujeito observado para supor qual representação ideativa viria de uma dada emoção. Isso não está de modo algum distante do conhecimento por analogia, uma das formas de similitude que regiam a construção do conhecimento antes do advento da ciência moderna.
O conhecimento constituído anteriormente ao advento da ciência é dependente da suposição de que a realidade apresenta signos e a tarefa de nossa razão é fazê-los falar de modo a alcançarmos sua verdade. Tais signos seriam interpretados segundo modelos baseados em relação de similitude e especularidade. Por exemplo, para os antigos, o fato de a nós ter formato de cérebro era signo de que este alimento faria bem para o sistema nervoso central. Por outro lado, temos que se na concha cresce o líquen e no cervo crescem galhos é porque eles estão na floresta e seu desenvolvimento se espelha neste local.
A grande dificuldade inerente a este tipo de raciocínio é que segundo esse modelo, o conhecimento está no mundo para ser recolhido, se soubermos ler através das analogias. Foucault assim explicita tal raciocínio: "Mas Deus, para exercitar nossa sabedoria, só semeou na natureza figuras a serem decifradas (e é nesse sentido que o conhecimento deve ser divinatio), enquanto os antigos já deram interpretações que não temos senão que recolher." (2000a, p. 45) Deste pondo de vista, a natureza comunica, o objeto fala através da imagem, "o discurso dos antigos é feito à imagem do que ele enuncia" (FOUCAULT, 2000a, p. 45). Os símbolos da natureza falam pedindo uma interpretação, e fornecendo na forma de uma progressão exponencial, mais símbolos a serem interpretados.
Entretanto, o que parecia fazer proliferar nos dá acesso a sempre mais do mesmo, ou, "o saber do século XVI nos condenou-se a só conhecer sempre a mesma coisa, mas a conhecê-la apenas ao termo jamais atingido de um percurso indefinido" (FOUCAULT, 2000a, p. 42). O efeito concentrador desse tipo de conhecimento especular, que procura o similar, o que se espelha, Lacan demonstra com uma alegoria. Lacan propõe que imaginemos umas maquininhas. Cada uma dessas maquininhas estaria ligada à imagem do que a outra vê, o que funcionaria como um guia para ela se movimentar. Se cada uma dessas é regulada pela visão da outra:
não é matematicamente impossível de conceber que isso redundaria na concentração no centro da manobra, de todas as maquininhas, respectivamente bloqueadas num conglomerado que não tem outro limite a redução que a resistência exterior das carrocerias. (LACAN, 1955-1956/1985, p. 114)
É essa a vertente que nos parece ser afeita a de Jaspers, que escolhe pela evidência da compreensão empática. Já discorremos sobre as consequências deste tipo de abordagem em que se supõe que há uma ligação intrínseca entre o saber e a realidade, onde vigora a ideia de que é possível obter saber a partir do acesso direto à realidade, porque desta emana uma verdade autoevidente a ser recolhida através de métodos interpretativos baseados no espalhamento. Por outro lado, a operação básica imputada à ciência, em contraposição ao conhecimento, foi um rompimento em relação à percepção como fonte de saber. Assim, em
contrapartida a esse modelo que dá ênfase às qualidades, temos o estruturalismo que se apresenta como uma forma acessória ao método do catálogo e o do análogo. Lacan apresenta-o como "função da chave" que seria "a forma pela qual funciona ou não a função significante" (1962-1963/ 2005, p. 30). Abaixo, queremos retomar os pressupostos do estruturalismo para observar como eles autorizam uma aproximação mais profícua do problema das doenças mentais graves se comparados ao dualismo metodológico utilizado por Jaspers.
Já percebemos que no método compreensivo o principio que rege é o mesmo que previa a construção de conhecimento no mundo antigo, dependendo da assunção de que o signo que se observa na realidade porta uma verdade que seria descoberta se fosse acompanhado um raciocínio analógico. No método de compreensão empática de Jaspers, quando imagino quais as reações que um sujeito teria a uma emoção, a suposição é que poderia me colocar em sua posição, como um espelho em relação a tal sujeito, para dizer quais conteúdos mentais tal pessoa tem diante de um fenômeno, gerando uma conexão compreensiva. Isso fica claro na definição de Dilthey que já citamos: trata-se de uma "descoberta do eu no tu‟. Assim, tanto para os antigos quanto para Jaspers, o signo da realidade ou da emoção permite a criação de um conhecimento a partir de um método de analogias; temos que nos dois casos o signo gera um significado, e conforme vimos, sempre existem mais signos que geram mais significados gerando uma proliferação do conhecimento. Observa-se aí a necessidade de alguma coisa que mantêm "relação, função e distância" (Deleuze, 1973), que não permite que a interpretação sígnea se prolifere de tal maneira a manter preso o conhecedor numa atividade incessante e despropositada, que, entretanto, leva sempre ao mesmo núcleo.
O que mantêm tal "relação, função e distancia" é exatamente o simbólico, a estrutura simbólica. Esse terceiro registro é irreal e inimaginável. Trata-se de um virtual que não deixa de fazer sentir seus efeitos. Define-se pela "natureza dos elementos atômicos" (Deleuze, 1973, p. 275) e as leis que regem seu posicionamento. Esses elementos não se definem por realidades pré-existentes, ou seja, não têm referentes. Da mesma forma, o elemento simbólico não se liga a imagens ou conceitos, onde se deduz que a principal característica do significante é ser a pura diferença, e seu sentido só pode ser obtido dada a sua posição em relação aos outros elementos, havendo aí o principio da determinação recíproca.
Vislumbra-se aí que o mais importante dos registros, daquilo que nossa razão registra, não é nem aquilo do qual é possível produzir a imagem, o imaginário; nem aquilo que tem consistência, e tende a fazer 1, o real; O que permite antever uma estabilidade para a ciência é o simbólico, composto por elementos que não tem referente na realidade - na percepção - nem no sentido. Foi preciso retirar do campo do conhecimento qualquer possibilidade de alicerçamento em algo que obtemos pela percepção, ou algo que obtemos pelos textos e sentidos que leem o mundo, para que de fato fosse possível uma estabilidade no conhecimento. Tal manobra pode ser chamada de golpe que separa a verdade do saber, ou seja, aquilo que percebemos e imaginamos não serve para sustentar a razão. O que sustenta a razão é justamente a capacidade de pensarmos a partir da conjugação de elementos cuja principal característica é aquela de diferir dos outros elementos, são assim elementos discretos.
Do desenvolvimento empreendido acima, é preciso ressaltar que a grande característica desta abordagem que permite aceder do conhecimento proliferante para a ciência é a queda do referente. Assim no paradigma estruturalista o que temos em contrapartida ao signo é o significante. O significante funciona como um elemento discreto cujo valor só pode ser dado por sua posição dentro de uma cadeia significante. A não relação do elemento com aquilo que ele figura, ou, usando uma leitura linguística, a não biunivocidade entre significado e significante, implica a necessidade, para a emergência da significação, que sejam encadeados contiguamente os significantes, pois eles só tem sentido posicional.
Diante deste quadro, retomamos aqui, a fim de ilustrar brevemente a abordagem da psicanálise, os elementos da teorização que permitem pensar de forma efetiva a psicose, colocada, a princípio, fora do campo da investigação psicológica por Jaspers.
Se conforme dizíamos que no estruturalismo o significante não está intrinsecamente atrelado ao significado, isto é verificável pelos muitos fenômenos da psicose em que há uma profusão de significantes, que fora de uma organização discursiva, não produzem nenhum sentido comunicável. Os fenômenos de verborragia, interrupção do pensamento, aceleração do discurso dizem respeito a esse encadeamento significante que não gera sentido e comunicação intencional. A experiência da psicose, portanto explicita a necessidade de aderência a um discurso para conferir sentido ao mundo. Sabemos que um discurso é aquilo que estabelece sinonímias, ou seja, corresponde significantes que a partir de então permanecem ligados. É o discurso que estabelece convenções que permitem saber qual o significado das palavras. Na ausência de uma grade discursiva que permite identificar na experiência os elementos que já tem significados fixos e são importantes para construção dos sentidos, todo signo passa a ser relevante. A ausência de discurso, portanto, expõe o sujeito a um furor interpretativo, e sem a convenção por ele estabelecida o individuo passa a construir sentidos particulares não compartilháveis. O acesso a essas convenções do discurso dependem de um ato de fé, de um assentimento do sujeito a um ordenamento que o ultrapassa enquanto indivíduo e é uma escolha inconsciente e forçada a qual o sujeito é apresentado em um momento muito precoce de sua estruturação.
Essa teorização sobre que esboçamos brevemente torna inteligíveis os fenômenos da psicose. A partir daí foi possível a elaboração de estratégias de tratamento que tem efeito mesmo fora do ambiente artificialmente controlado do hospital psiquiátrico. Isso não é sem consequências, já que a abordagem lacaniana das psicoses permite sustentar uma serie de intervenções nessa clínica e foi um dos pilares históricos que sustentaram, por exemplo, a implementação de um tratamento humanizado e não encarcerador das psicoses na experiência piloto ocorrida em Belo Horizonte1.
Concluindo, a teorização estruturalista sobre a psicose é o que permite um cálculo na clínica implementando estratégias de abordagem e tratamento. É o mesmo dizer que a ideia de que uma abordagem estruturalista permite acessar os fatos humanos sem tomar o humano como um ser vivo meramente biológico. Ressaltamos, em vista de nossa argumentação, que a abordagem estruturalista dissolve a dicotomia entre consciência humana e natureza biológica. Se essa era uma dificuldade que atravessava as ideias de Jaspers, e expulsa os fenômenos psicóticos para fora do humano e cultural, a psicanálise lacaniana apresenta uma abordagem mais profícua.
Referências bibliográficas
ABBAGNANO, N. Dicionário de filosofia. São Paulo: Martin fontes, 2007.
ALONSO-FERNANDEZ, F. T. Proceso y desarrolo. In: ALONSO-FERNANDEZ, F. T. Fundamentos de la psiquiatria actual: psiquiatria clínica. Madrid: Paz Montalvo, 1976. p. 191-214.
AMARANTE, P. Saúde Mental e Atenção Psicossocial. 4°. ed. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2013.
BLANCHÉ. A epstemologia. Lisboa: Editorial Presença, 1983.
DELEUZE, G. Em que se pode reconhecer o estruturalismo. In: CHÂTELET, F. História da Filosofia. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1973. p. 271-303.
FOUCAULT, M. Doença mental e Psicologia. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1975.
FOUCAULT, M. A Prosa do Mundo. In: FOUCAULT, M. As Palavras e as Coisas - uma arqueologia das ciências humanas. São Paulo: Martin Fontes, 2000a.
1 A psicanálise em extensão tem se mostrado um instrumento vigoroso para a intervenção em contextos institucionais voltados para o tratamento da psicose. O próprio movimento de reforma em saúde mental reconhece que um dos principais trunfos da experiência mineira, exemplo a nível nacional, foi o recurso à psicanálise o que está relatado no texto "A cidade e a loucura, entrelaces" (LOBOSQUE & ABOU-YD, 1998)
CliniCAPS, Vol 7, nº 19 (2013) – Artigos
32
JASPERS, K. Segunda parte: as conexões compreensíveis da vida psíquica. In: JASPERS, K. Psicopatologia Geral. São Paulo: Livraria Atheneu, 1973. p. 361-375.
JASPERS, K. Terceira parte: As conexões causais da vida psiquica (psicologia explicativa). In: JASPERS, K. Psicopatologia Geral. São Paulo: Livraria Atheneu, 1973. p. 551-745.
LACAN, J. O Seminário. Livro 3 - As psicoses. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1955-1956/1985.
LACAN, J. Angustia, signo do Desejo. In: LACAN, J. O seminário - Livro 10- A Angustia. Rio de Janeiro: Zahar, 1962-1963/ 2005. p. 25-37.
LOBOSQUE, AM; ABOU-ID, M. A cidade e a loucura – Entrelaces. In: Reis, AT (org) Sistema Único de Saúde em Belo Horizonte- reescrevendo o público. São Paulo: Xamã, 1998
TEIXEIRA, A. Entre o Signo e Significante: a esquisofrenia incipiente segundo Conrad. Revista do departamento de psicologia - UFF, v.18, n.1, jan./jun 2006. 1007-116.
VARGAS, A. P. et al. Demência por Neurossífilis: Evolução clínica e neuropsicológica de um paciente. Arquivos de Neuropsiquiatria, São Paulo, vol.58 n.2B, Junho 2000. 578-582.
Recebido em: 16 de setembro de 2014
Aceito em: 11 de novembro de 2014 |
|