ISSN: 1983-6007 N° da Revista: 21 Setembro à Dezembro de 2013
 
   
 
   
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A Desinstitucionalização no século XXI: luta, utopia ou fundamento?


Deinstitutionalization in the XXI century: fight, utopia or fundament?

 

 
     
 

Rogerio Quintella
Professor Adjunto do Departamento de Psicologia da Universidade Federal Fluminense (PUCG)
Doutor e Mestre em Teoria Psicanalítica pela UFRJ (PPGTP/UFRJ)
Coordenador do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre o Sujeito Contemporâneo - NEPESC/UFF – CNPq
E-mail: rrquintella@hotmail.com

Manoel Ferreira
Graduando do curso de Psicologia da Universidade Salgado de Oliveira
Acompanhante Terapêutico do Centro de Convivências da Rede de Saúde Mental do Município de Niterói/RJ
E-mail: manoelferreira.jr85@gmail.com

Eloá Amaral
Psicóloga pela Universidade Salgado de Oliveira
Psicóloga do CAPSad Alameda (Niterói/RJ)
E-mail: eloa_amaral@hotmail.com


 


Resumo:A Desinstitucionalização é uma das frentes fundamentais de ação da Reforma Psiquiátrica. Entendemos que esta concepção não pode se restringir a equipes de trabalho com pacientes de longa internação, no sentido da desospitalização, mas deve implicar todas as intermediações da lógica de rede de Saúde Mental bem como o trabalho na construção da autonomia e exercício de cidadania dos usuários. Nesse sentido, o presente trabalho visa discutir sobre o próprio conceito de Desinstitucionalização. Como disparador dessa discussão discorreremos sobre as práticas de exercício laboral e geração de renda nos CAPS, bem como os denominados "grupos de passeio" na rede de Saúde Mental. Indagamos até que ponto estas práticas produzem consequências reais no âmbito da retomada do poder de cidadania. Até que ponto elas podem funcionar como docilização e entretenimento, ou mesmo adiamento de novas internações? Vale ressaltar que, caso as práticas em Saúde Mental não se atentem para o fundamento de sua proposta, podem cair em meros paliativos que apenas adiem um novo processo de institucionalização.


Palavras-chave: Saúde Mental, Desinstitucionalização, Entretenimento, Cidadania.

Abstract:The Deinstitutionalization is one of the key areas of action of the Psychiatric Reform. We understand that this concept can not be restricted to work teams with long admission patients, in the sense of desospitalization, but must involve all intermediations of Mental Health network logic as well as the work on the construction of autonomy and exercise of users citizenship. In this sense, this work aims to discuss the very concept of Deinstitutionalization. To rise this discussion we will discuss the work practices and income generation in CAPS, as well as so-called "tour groups" on mental health network. We indagate to what extent these practices produce real consequences in the ambit of the retake of citizenship power. To what extent they can function as docilization and entertainment, or even postponement of new admissions? It is worth mentioning that if the practices in Mental Health does not value to the fundament of its proposal, they may fall into mere palliatives that only postpone a new process of institutionalization.


Keywords: Mental Health, Deinstitutionalization, Entertainment, Citizenship.

 
 

A Desinstitucionalização no século XXI: luta, utopia ou fundamento?


Introdução

Robert Castel, na obra "A ordem psiquiátrica" (CASTEL, 1978), aponta que o surgimento da instituição psiquiátrica se baseou fundamentalmente na sequestração do louco de seu exercício de cidadania, mediante aquilo que se denominou, na prática pineliana, "isolamento terapêutico". Para Pinel (1800-1801/2007) a terapêutica desenvolvida tinha como base o isolamento, dado que seria necessário afastar o indivíduo acometido pela alienação mental de seu ambiente de origem, causa fundamental da doença segundo as ideias de Pinel (BERCHERIE, 1989). A prática da tutela médica sobre o louco se sustentou, neste momento inaugural da psiquiatria, mediante a concepção da "menoridade mental" do alienado, bem como a aplicação do chamado "tratamento moral" que consistia num exercício de altivez afetiva do médico sobre o alienado, com objetivo de dominar seu comportamento e modificar o conteúdo de seus pensamentos, concebidos como patológicos. (PINEL, 1800-1801/2007). O tratamento moral e o isolamento terapêutico, concebidos por Pinel, são a base do surgimento da instituição manicomial. O chamado "tratamento moral" tinha como pano de fundo, conforme aponta Foucault (1973-1974/2010), o poder disciplinar e é, segundo o autor, o germe de toda a prática manicomial que redundou na dominação corporal do louco e na exclusão de seu exercício de cidadania. Hoje, a reforma psiquiátrica implica o processo de desinstitucionalização como frente fundamental de ação para a reconstrução da cidadania, bem como de diversas frentes de tratamento e práticas psicossociais inspiradas na PDI (Psiquiatria Democrática Italiana), bem como na clínica ampliada de cunho psicanalítico (BEZERRA Jr.,1996). Contudo, questiona-se até que ponto a prática da desinstitucionalização se consolida no seio dos próprios dispositivos de saúde mental desenvolvidos hoje. Levando em consideração a tamanha proporção da desinstitucionalização no campo da saúde mental hoje, o presente trabalho visa discutir algumas problemáticas cruciais do processo de desinstitucionalização, inerentes ao problema de sua concepção mesma na atualidade. Aqui especificamente, nos dirigimos às práticas desenvolvidas no Estado do Rio de Janeiro, articuladas à lógica da desinstitucionalização tal como concebida pela Reforma Psiquiátrica brasileira, inspirada na PDI. Como disparador dessa empreitada, discutiremos sobre as práticas de exercício laboral e geração de renda ligada aos CAPS, bem como os denominados "grupos de passeio" na rede de saúde mental, do município de Niterói/RJ. Nesse âmbito, indagamos: até que ponto as práticas acima relacionadas produzem consequências reais no âmbito da reconstrução do poder de contratualidade e da retomada dos direitos de

cidadania? Até que ponto elas podem funcionar como docilização e entretenimento, ou mesmo adiamento de novas internações? Sem desqualificar essas práticas - ao contrário, cabe valorizá-las, situando o modo como elas devem se realizar - visamos demonstrar, com esta discussão, que a desinstitucionalização não pode se encerrar apenas numa ação desospitalizante, mas deve trabalhar principalmente no fomento da autonomia e exercício de cidadania. Nesse sentido, deve desinstitucionalizar de fato e de direito. Caso as práticas em saúde mental não se atentem para o fundamento de sua proposta, podem cair em meros paliativos, correndo o risco de apenas substituir o isolamento institucional por um modo diverso de exercício de poder disciplinar nas sociedades atuais, apenas adiando uma retomada possível do processo de institucionalização. Entender a especificidade da desinstitucionalização é movimento que deve se fazer constantemente presente na luta antimanicomial, dado que os discursos contra reformistas se ampliam na atualidade e se respaldam nos fracassos da desinstitucionalização, bem como da sustentação efetiva das práticas em saúde mental. Para iniciarmos esta discussão tomamos como necessária uma revisão do modo como a institucionalização do saber psiquiátrico sobre a loucura se constituiu, de modo a podermos visualizar questões atuais que aparecem em torno da desinstitucionalização.

Repensando a história: a tutela médica no século XIX e a conjuração da loucura na sociedade moderna

Se partirmos do processo de institucionalização da loucura na história, em que ela passa a ser medicalizada, ou seja, passa a ser objeto do domínio médico, localizam-se neste processo dois aspectos de base a serem aqui destacados: a tripartição do Hospital Geral e o surgimento da Anatomia Patológica. Comecemos pelo primeiro.

Sabe-se que, no antigo regime até o século XVIII, o hospital era o espaço dos "desonrados": criminosos, doentes venéreos, vagabundos e, logicamente, loucos (FOUCAULT, 1972/2001). Realizando um verdadeiro escavamento na história das figurações da loucura nos séculos XVII e XVIII, Foucault demonstra com riqueza de argumento e escrita que, na idade clássica, em que predominava o racionalismo, o hospital geral existia como um espaço de jurisdição que, sob a égide do absolutismo monárquico, operava a exclusão do louco mediante a lógica cartesiana do erro. O "desatino" na loucura era a própria manifestação do erro perante o lugar que a razão, como meio de acesso à verdade, assumiu neste momento da história do pensamento, fazendo do louco mais um desonrado, permanentemente pronto a

deslizar para a figura do pecador sob o regime clerical da burguesia monárquica. Excluído do acesso à verdade, o desatinado, herdeiro da figura da besta animalizada da idade média, pertencia a apenas uma realidade possível: o internamento jurisdicional da antiga monarquia absolutista.

O hospital geral, como espaço de moradia e enclausuramento, era, portanto, o lugar dos desonrados: basicamente doentes venéreos, criminosos e loucos. Contudo a história não permitiu que o modelo de acorrentamento mantivesse a roupagem do hotel prisional, dado que a sociedade do século XVIII emancipava-se no clamor pela liberdade. Os discursos libertários alcançaram o cume dos movimentos revolucionários (CASTEL, 1978), fazendo cair o regime erigido pela base clerical da monarquia absolutista. Transformando-se em Estado Laico de Direito, a sociedade europeia do final do século XVIII exigia que se cumprisse o lema da liberdade. Ali, o hospital geral começa a perder sua lógica jurisdicional, e o problema do crime, do sistema penal e da justiça compõem o que veio a se denominar, com Foucault (1975/2000), sociedade disciplinar.

O criminoso, em sua responsabilidade perante a nova legislação estatal, deve ser punido, mediante a tecnologia da disciplina vigilante e compartimentada (FOUCAULT, 1975/2000). O doente venéreo, como humano merecedor de liberdade, não poderia compartilhar o mesmo espaço do culpado criminoso. E os loucos inocentes não poderiam receber o mesmo tratamento dos criminosos, nem dividir com este o mesmo espaço de intervenção. Irresponsáveis por seus atos, justificados pela desrazão que os habita, deveriam ser libertos.

Contudo, por uma questão de insanidade, que logo se transforma em doença, o louco, na concepção geral deste momento histórico, não sabe fazer bom uso de sua liberdade. O uso da liberdade passa a constituir um problema para a nova sociedade liberal, sustentada pelo livre contrato (FOUCAULT, 1973-1974/2010).

Neste cenário, por outro lado, a medicina ganha, também, um novo status, corolário da queda dos valores clericais em torno da proibição de abertura dos cadáveres. Com acesso material à doença, a investigação médica se levanta como um discurso verdadeiro sobre o corpo, à medida que constata a doença orgânica sem elucubração, constituindo novo método de abordagem das doenças orgânicas a partir de um suporte perceptivo, empírico, sobre o cadáver. Eis o segundo aspecto de base, intrinsecamente relacionado ao primeiro.

Isto porque a medicina passa a adentrar o hospital geral, fazendo deste um espaço de investigação e tratamento das doenças orgânicas mediante o conhecimento e a investigação empírica sobre a anatomia e a fisiologia, dando força ao que veio a se denominar Anatomia

Patológica. Isto elevou a medicina orgânica a um status de autoridade política na sociedade liberal, nunca antes assumida.

Neste mesmo momento, Philip Pinel (1800-1801/2007), com seu "Tratado médico-filosófico sobre alienação mental" aparece como um novo pesquisador que se debruça sobre a questão da alienação mental, tomada por este, como doença. Como destacamos inicialmente, Pinel se utiliza fundamentalmente do isolamento terapêutico e do tratamento moral como técnicas que visaram nada mais que a cura dos "doentes mentais" (agora assim concebidos). Na proposta de seu tratamento moral, com objetivo de modificar o padrão mental do alienado mediante a altivez do médico e sua afetiva posição paternal sobre o louco (BERCHERIE, 1989), Pinel implementa a disciplina institucional, defendendo o isolamento como necessário à nova terapêutica que visa sumariamente nada mais que a liberdade.

Ora, como aponta Foucault, foi na onda da autoridade médica emancipada pela Anatomia Patológica, e não pela medicina mental em si, que o discurso médico sobre a doença mental ganhou notoriedade, sob a caução da primeira. Herdeira sumária, contudo, da antiga medicina das espécies, a medicina mental passa a classificar e isolar sob a premissa do tratamento moral, criando-se o manicômio, e estigmatizando-se o doente.

Pinel vem, para Foucault, dar solução ao problema da liberdade dos loucos na sociedade liberal moderna. Segundo a lógica pineliana, o louco não pode responder por seus atos devido à sua "menoridade mental", concepção de Pinel (1800-1801) que o impede de assumir-se como sujeito de direito. De fato, a tutela médica, com sua altivez moral, reverbera no tempo, relegando ao hospício, na prática, o lugar natural da loucura. Pinel nada mais faz do que resolver, segundo Castel, um problema que não é de ciência positiva, mas de política (CASTEL, 1978). Na onda mesma dos movimentos pela libertação dos inocentes, este processo coloca a medicina a arvorar-se da investigação sistemática daqueles que, não criminosos, mas potenciais perigosos (loucos), não poderiam ser absorvidos pela sociedade liberal de contrato (CASTEL, 1978).

Com efeito, era o Estado liberal, laico e de Direito, o maior interessado nas teses pinelianas. Não é por acaso que o novo médico da alienação mental foi nomeado para ocupar o posto daquele que iria desacorrentar os loucos e "libertá-los", incluindo-os na terapêutica do isolamento. O manicômio é a tradução, portanto, do próprio surgimento da psiquiatria que, sob a caução da autoridade médica anatomo-clínica, assume o posto do saber que passa a esquadrinhar a realidade da loucura sob os ditames da disciplina institucional. Nesse sentido, nada mais preciso do que a localização de Foucault sobre a relação entre medicina mental e medicina orgânica e a descontinuidade de suas metodologias. Para Foucault, é por um

artifício de linguagem que a medicina mental ganha status de autoridade sobre a loucura, garantida por uma caução que a anatomia patológica vai emprestar. Mas nada de comum reside entre as duas, em termos de metodologia (FOUCAULT, 1954).

Com efeito, evoca-se na medicina mental o espírito de autoridade política e social que a medicina orgânica passa a sustentar, esta última adentrando os espaços institucionais e reinventando o hospital geral. Este se transforma num espaço de cura e investigação das doenças, relegando ao manicômio a tarefa de aplicar a nova regimentação do louco, e relegando à prisão a jurisdição sobre o crime, imputada pela legislação estatal.

É sob o prisma do surgimento dessas instituições que a autoridade médica, a partir da Anatomia Patológica, imprime seu status nos setores diversos da sociedade e das instituições, fazendo do crime, do corpo e da mente, objetos de intervenção médica cujo pano de fundo é para Foucault, o poder disciplinar. Para a doença orgânica, a medicina anatomo-clínica (hospital geral); para o criminoso, a medicina criminológica (prisão); para o louco, a psiquiatria (manicômio).1

Assim, durante o século XIX, o corpo e nada mais do que ele, constitui o ponto crucial de intervenção médica: o corpo da doença orgânica; o corpo do criminoso; o corpo do louco (FOUCAULT, 1963).

A questão da desinstitucionalização em torno da loucura - nosso objeto de estudo aqui - apareceu no século XX como frente de questionamento e desconstrução dos paradigmas acima discutidos. Ela se direciona ao desenvolvimento de práticas que não apenas substituam a lógica tutelar e manicomial, mas também sirvam como elo de reconstrução da cidadania do louco, operando-se uma desconstrução do saber psiquiátrico. Tal processo se traduz por uma crítica à tomada da loucura como objeto do saber-poder médico, que o conjura a uma nova jurisdição, sustentada pelo laudo. Hoje o movimento de intersetorialização na abordagem e intervenção sobre o problema da loucura, não obstante seus avanços, encontra ruídos os quais, muitas vezes, se fazem imperceptíveis pelo ensurdecimento que a lógica do entretenimento impõe (SARACENO, 1999). Adiante, trataremos desta questão, doravante alguns aportes de nossa prática que, não obstante revelaram-se como extremamente positivas no que concerne
1 Eis, portanto, a tripartição do antigo Hospital Geral, bem como da própria medicina. Cabe acrescentar que a medicina criminológica e a medicina mental, tributárias da antiga medicina das espécies, relegam ao ser e à essência, a condição do criminoso e do louco, tal como eram concebidas anteriormente as doenças em geral, na lógica de uma "botânica das espécies". Comportando o essencialismo das doenças, a medicina das espécies ecoou na medicina mental e criminológica o próprio movimento de naturalização da doença - neste caso, a loucura e a delinquência - sob a rubrica da doença como "espécie", essência, natureza. (FOUCAULT, 1963).

aos objetivos da reforma, apontam para uma realidade problemática no seu cotidiano que pode potencializar o aggiornamento2 do modelo manicomial.
Desinstitucionalização no século XX

De fato, a Psiquiatria Democrática Italiana (PDI), maior inspiração da Reforma Psiquiátrica no Brasil, é movimento que propõe, e luta para implementar, uma recomposição epistemológica da abordagem sobre o louco, doravante uma lógica que desconstrói a loucura como objeto do saber médico. Este movimento prima pela intervenção e cuidado sobre o louco mediante setores diversos da sociedade, não imputando a um saber médico a circunscrição do seu campo. Visa destituir o médico de sua posição inicial de exercício de poder e exclusão institucional, possibilitando ao louco a construção de sua própria cidadania através de uma rede de cuidado e tratamento, intersetorial e multidisciplinar, substituindo a tutela médica pela atenção psicossocial.

Desta forma, faz-se necessária uma pontuação, que se dirige à lógica da desinstitucionalização. Esta lógica não se confunde com a desospitalização. A luta antimanicomial, que se deflagra no século XX e toma novas forças no século XXI deve estar atenta aos aportes teóricos e epistemológicos que envolvem tal exercício de desconstrução. Com efeito, o que se visa não é uma simples substituição do manicômio pela Residência Terapêutica e CAPS, mas um verdadeiro e radical desmantelamento da lógica institucional moderna que, além de excluir socialmente, aniquila o poder de contratualidade e autonomia do louco. Tykanori (1996) apresenta o conceito de contratualidade como a dimensão das relações de trocas que um sujeito exerce, dentro do campo social, sendo estas trocas divididas, basicamente, em três: trocas de bens, mensagens e afetos. Nesse sentido, o louco, enquanto institucionalizado, tem anulado seu poder contratual: seus bens tornam-se suspeitos, suas mensagens incompreensíveis, e seus afetos desnaturados. Nessa linha de pensamento, Saraceno (1999) fala de autonomia diferenciando esta da ideia de independência. Dependentes todos somos, seja da relação aos outros, seja da relação às diferentes formas de laço social. Nesse sentido, promover autonomia não estaria ligado à busca de uma independência, mas sim a multiplicação das dependências do cidadão louco, em âmbito social. Ou seja, desconstrói-se a dependência sumária do louco à tutela médica, potencializando-se sua autonomia numa rede ampliada de dependências no tecido social.

2 Aggiornamento é uma expressão utilizada por R. Castel (1978) para caracterizar o salvamento de uma determinada prática sob formas diferenciadas de se reproduzir, na essência, o mesmo.

O poder disciplinar, ao docilizar os corpos, dominando-os, leva a grau zero a potência do louco à criação, à invenção, à troca, à cidadania e à autonomia. Autores como Tykanori, Amarante, Saraceno e outros, demonstram a viabilidade do exercício de cidadania mediante a assistência intersetorial sustentada pela lógica da atenção psicossocial.

Adiante, discutiremos duas situações práticas, em nossas experiências, que evidenciam tal possibilidade, marcando-se, em contrapartida, os diferenciais que imprimem o efetivo reconhecimento desta possibilidade perante a dificuldade de sustentação da proposta fundamental da Reforma Psiquiátrica. A primeira situação permite avaliar até que ponto alguns dispositivos governamentais para a saúde mental, como a chamada bolsa de trabalho funcionam como dispositivos de reconstrução da cidadania; a segunda situação se pauta no denominado grupo de passeio. Ambas as práticas são desenvolvidas na rede de saúde mental do município de Niterói/RJ.

A perspectiva da desinstitucionalização pela via da promoção do trabalho e da cultura: uma aposta nos dispositivos "bolsa de trabalho", e "grupo de passeio"

Concebendo a desinstitucionalização como norteadora da Reforma Psiquiátrica, entendemos que as práticas exercidas em dispositivos, como os CAPS, devem estar sempre pautadas - para além de qualquer procedimento terapêutico - em ações que visem a ocupação/apropriação do território pelo louco, produzindo-se, assim, novas relações, e promovendo-se, de fato, a reabilitação psicossocial (SARACENO, 1999).

Atualmente, observamos que este objetivo não foi plenamente alcançado pelos CAPS. A experiência no campo da saúde mental nos mostra que ainda prevalece, na grande maioria dos CAPS, uma lógica semi-manicomial, que se traduz pela ausência de um trabalho voltado, efetivamente, para o território, funcionando muitas vezes de maneira "endógena".

Neste cenário problemático, para dar solução a este impasse, surgem os Centros de Convivência, dispositivos criados para responder a este mandato de trabalho territorial que não foi cumprido pelos CAPS. Regulamentados a partir da portaria nacional 396, de julho de 2005, os Centros de Convivência e Cultura têm como direção de trabalho a (re)inserção do louco no território, a partir da articulação/agenciamento de parcerias com instituições do próprio território, tanto no eixo laboral, como no eixo cultural.

Relatamos aqui uma experiência acompanhada no Centro de Convivência do município de Niterói, onde agenciamos um trabalho no território para uma usuária, utilizando o recurso da "bolsa de trabalho", que é um tipo de auxílio fornecido pela prefeitura de Niterói para os usuários da rede de saúde mental. Cabe salientar que esta bolsa sempre foi usada nos

CAPS na oferta de "trabalhos internos" oferecidos aos usuários. Ali, os mesmos não manifestavam nenhuma implicação em tais trabalhos, que, por fim, se caracterizavam como "práticas de entretenimento" dos usuários (SARACENO, 1999). O Centro de Convivência apareceu, neste momento, como uma forma de utilizar tais bolsas estrategicamente, como um meio para que os usuários pudessem trabalhar em serviços no território. Nessa empreitada, agenciamos parcerias com diversas instituições da cidade, propondo o serviço do usuário nas mesmas, remunerado pela bolsa.

O caso de uma das usuárias ilustra de maneira significativa a rica experiência no Centro de Convivência , com essa nova forma de utilização da bolsa de trabalho para a reconstrução de seu poder de cidadania e autonomia.

A usuária A chega ao Centro de Convivência acompanhada da família, neste caso, o irmão. Ela apresentou um comportamento bastante característico, de fala extremamente restrita e retraída. Outra característica desta usuária é seu riso imotivado – por exemplo, quando relata que sua filha pequena foi hospitalizada, mas fala disso gargalhando. Sua história fala de um abandono pela mãe, em que A passa a morar na rua, até ser encontrada pelo irmão, grávida. Sobre isso, A diz que não sabe ao certo sobre quem seria o pai do seu filho.

Ao longo do tempo, A passa a se destacar, principalmente na parte da limpeza, sendo integrada à Bolsa de Trabalho. A partir de então, ela rapidamente se torna a funcionária mais eficiente na faxina do Centro de Convivência, isto devido, principalmente, à sua experiência anterior em casas de família como faxineira, segundo ela mesma relata.

Além disso, A participa ativamente das outras atividades do Centro de Convivência, integrando-se, cada vez mais, ao ambiente. A usuária começa então a frequentar diversos pontos da cidade e atividades fora do Centro de Convivência, como teatro, praia, cinema. Este movimento faz com que ela apresente mobilidade cada vez maior em suas formas de se expressar. Nesse período chega a engatar um namoro com um usuário também frequentador do Centro de Convivência, levado a sério pela usuária.

A partir do momento em que ocorre um redirecionamento de trabalho, na condução das bolsas de trabalho, em que visamos uma nova direção que seja mais congruente com a proposta do Centro de Convivência, nos deparamos com uma oportunidade de trabalho no território para a usuária. Uma oportunidade que surge na solicitação por parte da Secretaria Regional de Jurujuba, de uma faxineira.

A começa, então, a trabalhar na Secretaria Regional de Jurujuba, com o Centro de Convivência podendo agenciar sua chegada até lá. Ela mostra então um grande interesse e

empolgação pela nova colocação. Durante sua permanência ali, no início, teve seu trabalho elogiado pela secretária do setor, de uma forma geral. No entanto, passado algum tempo a secretária contacta o Centro de Convivência fazendo uma reclamação, onde diz que tem tido problemas com A, não pela qualidade de seu trabalho, mas pela forma como ele é desempenhado. A secretária reclama que A faz o que não é pedido para ser feito, limpa o que está além da necessidade; e nesse sentido pauta sua reclamação principalmente no fato de ter que se ocupar de "vigiar" a usuária, para se assegurar de que a mesma esteja cumprindo apenas o que lhe é pedido.

A partir daí, marcamos um encontro com a secretária, para uma conversa sobre a A; pautamo-nos na segunda etapa do processo de agenciamento do trabalho, em que o Centro de Convivência acompanha "de longe" o usuário no exercício do trabalho, e intervém quando necessário. Nessa conversa, nos preocupamos muito mais em ouvir e acolher o que a mesma tinha a dizer sobre a usuária do que, de fato, passar algum tipo de instrução sobre como agir. Após falar de suas insatisfações sobre a usuária, a secretária aponta que, se não fosse isso, a usuária terminaria o serviço em uma hora. Contudo a secretária termina por afirmar que, apesar de tudo, está se adaptando à usuária.

O discurso da secretária evidencia a importância do trabalho do Centro de Convivência de intervenção na cultura, por entendermos que esta cultura – entendida aqui no sentido de uma sociedade atravessada sócio-históricamente pela ideia de loucura – é tão institucionalizada quanto o próprio louco. Neste caso, especificamente, a secretária demonstra que precisava mesmo de um acolhimento, muito mais do que algum tipo de instrumentalização, para lidar com A. O traço da institucionalização que surge em seu discurso se caracteriza, por exemplo, por uma atitude "pedagógica" daquela em relação à usuária – quando diz, por exemplo, que teve de ensiná-la a passar pano no chão.

Atualmente, A não está mais trabalhando na Regional de Jurujuba, mas não por ter sido rejeitada – muito pelo contrário, seu trabalho foi sendo cada vez mais elogiado – mas porque um profissional da Fundação Municipal se apresentou para ocupar este cargo. A demonstra grande pesar por não poder mais trabalhar com a secretária, sempre perguntando sobre ela, demonstrando até mesmo um "saudosismo" relativo à época em que trabalhou com a mesma.
À parte disso, A demonstra cada vez maior autonomia, na acepção de Saraceno, e inclinada a novas práticas de exercício laboral, evidenciando uma ampliação de sua possibilidade de negociar, trocar, trabalhar, se relacionar, etc. para além dos estigmas de sua experiência com a loucura. Mostra-se cada vez mais falante, se relacionando com todos, bem diferente do que apresentava na sua chegada ao Centro de Convivência, quando mal interagia,

sendo comparada a um "bichinho do mato". Sobre isso, ressaltamos aquilo que buscamos, de fato, na desinstitucionalização: a emergência ou produção da singularidade e a recuperação da capacidade do usuário construir sua própria rede, habitar seus próprios espaços, para além do que lhe foi dado, e determinado, pela lógica psiquiátrica clássica.

Outra situação ilustra com riqueza de experiência aquilo que visamos expor, no que concerne à problematização aqui localizada. Lançaremos mão, como face ilustrativa de nossa argumentação, uma situação no trabalho desenvolvido no denominado "Grupo de Passeio", realizado no Ambulatório de Saúde Mental da Policlínica Carlos Antônio as Silva do Município de Niterói – RJ.

Esta experiência toca a prática da reinserção do louco na sociedade bem como tem como norte a ampliação e a articulação das redes de saberes/afetos dos usuários.

O "grupo de passeio" teve início em Setembro de 2008 e era chamado na época de "Amigos da PRCAS" – Policlínica Regional Carlos Antônio da Silva. Surgiu a partir da percepção dos técnicos - da época - pelo desejo de alguns pacientes em realizar alguma atividade fora do ambulatório. Após algum tempo desenvolvendo esta atividade, percebeu-se que estávamos cada vez mais ocupando o território e trabalhando aos poucos a participação e autonomia dos usuários. Atualmente são realizados passeios toda sexta-feira, o grupo conta com aproximadamente 12 usuários, entre quatro e cinco passeios mensais. Os mesmos tomaram conhecimento do grupo de diversas maneiras, tais como: indicação de algum técnico da equipe, convite dos próprios membros do grupo ou por demanda espontânea. Muitas vezes o interesse do usuário em participar surge a partir da movimentação do próprio grupo no dia do passeio.

O grupo opera como uma ferramenta clínica que possibilita a circulação dos usuários no território bem como a reinserção social. Tentamos construir uma prática que possibilitasse a "multiplicação das dependências" dos mesmos, no sentido utilizado por Saraceno (1999).

Sustentar essa prática é um desafio, pois ela não acontece sem questões e dificuldades. Muitas vezes nos encontramos embaraçados com certas situações. Como dar um suporte aos problemas que aparecem a esses pacientes no inusitado do dia, sem funcionar como um "tutor" visto que alguns desses casos demandam uma necessidade maior de atenção? Eis aí a necessidade de distinguir atenção e cuidado de tutela, o que não é fácil no cotidiano desta prática.

Para ilustrar esta questão falaremos da paciente M. Esta foi indicada ao grupo por sua técnica de referência3 e durante os passeios fomos percebendo que ela não executava efetivamente nada por si mesma, desde um simples abrir de mochila para apanhar o cartão de passagem até o ir ao banheiro. M ficava sempre na espera do outro, e em sua dependência sumária. Nesse caso, observamos que a usuária apresentava imensas dificuldades de agir sem a intervenção e tutela de um outro. Não obstante conseguir fazer sozinha algumas poucas coisas, sua mãe não permitia que fosse mais longe, e se antecipava em direção a M no sentido de agir no lugar da filha. Não havia um espaço de separação entre M e sua mãe; as duas se apresentavam sempre como numa espécie de continuidade e complementação, uma da outra. O grupo passa então a funcionar como um mediador desta relação. Desde o início notamos que essa usuária precisava aparecer em sua singularidade, precisávamos dar espaço, dar-lhe voz, para que aos poucos M construísse alguma autonomia. Neste sentido fomos trabalhando com ela como, por exemplo, o abrir e fechar da mochila. Este processo demorou quase 1h, mas precisávamos estar permanentemente presentes e mostrar que ela também poderia fazer aquilo por si mesma. No momento, então, de passar o cartão de passagem na condução que nos transportaria no grupo de passeio, nós seguramos a mochila, mas foi ela quem abriu e pegou o cartão. A partir disso, foram impressionantes os efeitos positivos ao longo dos passeios seguintes, no sentido de sua autonomização. Hoje, M consegue apanhar seu cartão de passagem sozinha, chega ao ambulatório e nos fala sobre os passeios que fez com sua família, o que quer fazer, para onde vai viajar. Isto não quer dizer que M não tenha mais dificuldades; contudo ela conseguiu construir maior habilidade de criar novas normas para sua relação com o outro e com o mundo, de maneira singular.4

É importante considerar que esses usuários não se resumem à doença em si, é preciso levar em consideração a singularidade de cada sujeito, bem como seu discurso. Por isso a importância de desenvolver atividades no território, na cidade/local em que habitam. Isto parece óbvio, contudo muitos profissionais consideram que o tratamento do sujeito se restringe ao espaço físico do serviço e ficam presos as suas próprias projeções e ideais, esperando a melhora ou adequação do sujeito ao meio para desenvolver atividades de 3 Dentro da lógica de funcionamento da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), o técnico de referência seria aquele que se encontra "mais próximo" do usuário, em seu tratamento, justamente pelo vínculo que este virá a construir com o técnico que o atende. Cabe salientar que este modelo tem como principal inovação o fato de que qualquer profissional (psicólogo, terapeuta ocupacional, enfermeiro, etc.) da RAPS pode exercer a função de técnico de referência, desconstruindo, assim, a centralidade do médico psiquiatra no tratamento em saúde mental, justamente pela valorização do vínculo.

4 Fazemos aqui referência ao pensamento de Canguilhem (1943/1966) que define a saúde como potência normativa, ou seja, capacidade individual de produzir novas normas perante a instabilidade/infidelidade do meio.

reabilitação. De outra sorte, podem cair também em outra polaridade, permanecendo na lógica de numa oferta desenfreada de atividades, oficinas e "apostas" que não incluem o sujeito num trabalho de construção conjunta de seu projeto terapêutico.

Estas duas experiências, simples, mas de grande efeito na realidade destes usuários da RAPS, e significativas para a compreensão da proposta reformista, são ricas para se pensar as perspectivas de sucesso e de sustentação da desinstitucionalização no nosso tempo. Os serviços de saúde mental podem existir no âmbito da Reforma, mas não garantem seu sucesso, já que podem tomar destinos diversos daqueles que preconizam a efetiva inserção psicossocial. Discutiremos a seguir as implicações destas práticas quanto aos objetivos da desinstitucionalização e da implementação das políticas de saúde mental hoje.

Onde se localiza a desinstitucionalização?

A breve apresentação sobre as duas experiências relatadas no âmbito da atenção psicossocial serve para refletirmos sobre os aspectos éticos e políticos que envolvem a reforma psiquiátrica. Nesse patamar, cabe situar precisamente onde se localiza a desinstitucionalização, dado que, em muitas das práticas em saúde mental aparecem segmentadas entre equipes. No Brasil é comum aparecerem as equipes de desinstitucionalização como formas segmentadas de trabalho, geralmente focadas na desospitalização de pacientes de longa e mesmo de curta internação, num trabalho que faz ponte entre os manicômios e as redes municipais de saúde mental.

Nas duas experiências aqui expostas, não se trata de desospitalização. Ambas as usuárias já se encontram na cidade, utilizando-se de pontos de tratamento, seja o CAPS, seja o ambulatório. Então qual a relação entre a desinstitucionalização e as experiências aqui relatadas?

Entendemos que, não obstante parecer óbvia e naturalmente formulável, esta pergunta não é correta. Antes, trata-se de perguntar: onde se localiza efetivamente a desinstitucionalização?
Trata-se, então, nessas exposições, de localizar ações clínicas e micropolíticas que disparam novas possibilidades de encontros, de trocas e de criação, ampliando-se o poder de contratualidade, de negociação, de inserção e de socialização. Com efeito, é precisamente nestas microações, produzidas no cotidiano da reforma psiquiátrica, que buscamos localizar a desinstitucionalização. Ambas as experiências revelam atos que desinstitucionalizam, à medida que produzem sujeitos mais autônomos em suas redes afetivas e sociais, afastando-os do entretenimento que é, segundo Saraceno (1999), o próprio paradigma da instituição psiquiátrica.

Desejamos, portanto, apontar para dois aspectos cruciais desta questão, que fazem referência direta à efetiva prática de desinstitucionalização. O primeiro aspecto se refere ao fato de que as práticas em saúde mental, seja em oficinas, seja em Centros de Convivência, seja em Grupos de Passeio, em práticas de geração de renda etc., podem funcionar como meros focos de entretenimento e controle, caracterizando apenas novos modos de aplicação do poder disciplinar. No caso da paciente A, a bolsa de trabalho, se não investida no exercício da contratualidade e da autonomia, transforma-se em mero paliativo, até mesmo para a disciplinarização dentro do próprio CAPS. No caso de M, o grupo de passeio pode redundar num exercício de entretenimento que mantém o indivíduo dentro do sistema disciplinar, funcionando como "passa tempo" - prática que muitas vezes se assiste no âmbito das ações que se dizem psicossociais na atualidade. Em ambos os casos, os técnicos agiram no sentido de potencializar a habilidade de autonomia e negociação. Sendo assim, se o técnico não coloca como horizonte e objetivo a reconstrução da cidadania e da autonomia, bem como a ampliação da contratualidade, tal como relatado nas experiências aqui apresentadas, os serviços de saúde mental se reduzirão, com o tempo, a organismos extensivos dos manicômios, produzindo-se uma exclusão maquiada de socialização: braços do poder disciplinar (FOUCAULT, 1973-1974/2010) e da sociedade de controle (DELEUZE, 1992) contínuos à lógica tutelar da psiquiatria clássica, sem rompimento efetivo com esta, mesmo que fora do hospício.

Sendo assim, é na ação clínica e micropolítica, mediante os serviços de saúde mental, que se realiza efetivamente a desinstitucionalização. Os serviços de saúde mental no CAPS, na RT, bem como na cidade são, portanto, meios, e não fins.

O segundo aspecto se refere, finalmente, então, à própria concepção de desinstitucionalização. Esta não se confunde com desospitalização, e se acha presente, a nosso ver, em todas as esferas da prática em saúde mental. Trata-se de desinstitucionalizar o saber-poder que reduz o louco a um objeto. Trata-se de ações macro e micropolíticas que vão desde o trabalho de desospitalização, através de equipes para tal designadas, até a ponta do trabalho em saúde mental, seja nas atividades de acompanhamento terapêutico, seja nas oficinas, seja ainda na atenção à crise. A desinstitucionalização é o cerne mesmo da reforma psiquiátrica que visa, em seu fundamento, a recomposição epistemológica da abordagem sobre a loucura. Ela deve funcionar presente e atuante em todas as intermediações da lógica de rede da Saúde Mental e como ponte para a reconstrução da cidadania de cada usuário, em sua singularidade.

Entretanto, vivenciamos ainda hoje, nos diversos dispositivos da rede, o quão complexa é esta questão e o quanto precisamos combater a cada dia retrocessos que ocorrem em muitos desses espaços, por vezes, transformados em espaços de entretenimento e de reprodução do modelo manicomial.

Neste sentido, entendendo os desafios da desinstitucionalização e a tamanha relevância desta concepção para a prática diária em saúde mental, pensamos que a desinstitucionalização toca tanto o ponto de vista institucional, fiel à sequestração da cidadania, quanto o epistemológico, como força para a desmedicalização, já que destitui o lugar do médico como detentor do saber-poder sobre o louco. Por fim, cabe fazer referência ao lugar que a desinstitucionalização ocupa hoje, em oposição à lógica psiquiátrica institucional tal como abordamos inicialmente aqui. A reforma psiquiátrica é, em nossa concepção, precisamente, a destruição do poder disciplinar e a construção do poder contratual. Nessa concepção, aqui defendida, desinstitucionalizar significa devolver a cidadania sequestrada, permitindo a abertura de um espaço de construção do novo por parte do usuário, não mediante a tutela que enclausura, mas a atenção que potencializa a autonomia. Tal construção do novo só pode se realizar à medida que nos subtraímos e nos abstemos da posição de tutor que exerce poder, mas nos ofertamos à condição do parceiro que potencializa o singular, a criação, a autonomia e o exercício de cidadania. Este movimento implica constantemente uma luta, seja pela emancipação do louco, sua inclusão e liberdade, seja pelo papel efetivo que um técnico deve exercer em sua prática nos serviços de saúde mental, para não transformar esses serviços em ilusória formatação política que só adia a reinscrição do modelo manicomial em nossa sociedade. Trata-se então de uma luta não utópica, que tem como fundamento a lógica da desinstitucionalização tal como aqui preconizada.

Referências Bibliográficas

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PINEL, Ph. (1800-1801/2007). Tratado médico-filosófico sobre a alienação mental ou a mania. Tradução de Joice A. Galli. Porto Alegre: Ed. da UFGRS.

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Recebido em: 16 de Setembro de 2015 Aceito em: 30 de Setembro de 2015

 
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