. Laura, 17 anos, apresenta um déficit cognitivo e tem a  psicose como hipótese diagnóstica. Atendida desde 2003 na saúde mental  infanto-juvenil apresentou em 2005 sintomas, tais como: risos imotivados,  crises de agitação, alucinações visuais e auditivas. A mãe dizia: “às vezes ela  fica a noite inteira  rindo, quase não  dorme.” Em outro momento a mãe conta que Laura ficou estranha, queria sair para  a rua, perder a virgindade, seguir sua vida. Diante dessa situação, Laura  acabou parando de freqüentar a escola. A  partir desse momento, Laura começou a ser atendida também pela psiquiatria. Logo  após a crise,  sua referência técnica e a psiquiátrica incluíram em seu  projeto terapêutico a indicação  para o projeto  circulando pela cidade, o qual  se constitui como um dos dispositivos de  tratamento do Capsi de Betim.
                              . A proposta  desse projeto é transitar com os pacientes nos diversos espaços da cidade,  acompanhando-os  de uma forma  sistematizada e direcionada pelo seu projeto terapêutico. “A idéia é utilizar o  circular pela cidade  como uma estratégia  para que a criança e/ou adolescente possa descobrir  outras formas de relações  com o mundo, que não o isolamento, o desânimo,  a agressividade ou a passagem ao ato.” (BONTEMPO, 2003, P.251). E aqui , vale  destacar, que o próprio  sentido  etimológico do termo  circular  inclui entre seus significados:  “rodear”, “ “girar”  “ andar em volta” e  “ fazer círculo ou roda”.(HOUAISS, 2001, p.727) Assim, podemos dizer que uma  das dimensões do projeto é intervir e acompanhar  em determinado momento  esse andar, esse girar, esse rodear daqueles  que muitas vezes se  “encontram isolados  em suas casas, não freqüentando escolas e nem espaços públicos de lazer  ...”(SILVA, 2003, p. 228) 
                              . Em outubro de 2006, Laura começou a participar  semanalmente  do circulando. Como fazemos  com demais usuários do projeto, primeiramente levantamos com ela as atividades  que mais gostava de fazer. Cabisbaixa, fala quase inaudível diz: “gosto  de   pular corda”;  “ gostaria de  conhecer o centro de Betim”. Nas reuniões   de organização e avaliação do circulando com os pacientes  trabalhamos com eles  que as atividades do projeto são definidas a  partir de suas  sugestões. Assim, intervimos  de modo que Laura. pudesse fazer alguma sugestão de passeio, mas nesse dia  a proposta contemplada foi a de  outra paciente.  Discutimos com os participantes da atividade  que todos poderão dar uma idéia quanto aos locais a serem visitados e  procuramos definir com eles quais serão as prioridades e a seqüência dos  passeios a partir daquele momento e os motivos dessa organização.    
                              . A primeira atividade de Laura no projeto foi uma visita ao Centro  Cultural Frei Estanislau, no bairro Jardim Teresópolis. Uma das integrantes do  circulando mora nessa região e mostrou interesse em fazer um curso no local.  Nesse momento, a proposta dos técnicos era contribuir com a construção do  vínculo dessa paciente com o Centro Cultural Frei Estanislau, bem como,  levantar informações sobre a possibilidade de inclui-la nos programas culturais  e sociais da instituição.  Nesse dia, Laura  mostrou-se robotizada, evitando contato. Sobre os  cursos e oficinas do Frei Eustanislau, Laura  mostrou interesse  pela capoeira.  Contudo, ficou tensa, parecia preocupada, queria saber o horário de volta.  Queria saber se a mãe estava esperando por ela. 
                              . Na reunião de avaliação da atividade, Laura manteve-se  silenciosa, mas observamos que quando alguma fala lhe agrada, sorri e abaixa a  cabeça. Nas primeiras atividades, Laura apenas responde as perguntas que lhe  são dirigidas. Nesse  momento fala sempre  de um namorado. “ Eu gosto dele”; “ mas ele me chifra”; Laura conta que o beija  e que ele vai à sua casa. 
                              . Em função do desejo de Laura em conhecer o  centro da cidade de  Betim, definiu-se junto com os usuários que  essa será a  próxima atividade do projeto. Durante essa  atividade fomos à feira de camelôs e  ao  sacolão popular. Laura mantém uma postura de observação e mantém-se calada. Perguntada,  Laura diz que não saiu de casa essa semana e que continua namorando, ri quando  falamos no assunto. Mostra-se envergonhada e constrangida, principalmente  quando escuta de R (outra participante do  projeto) falas tais como: “ Fico com meu namorado, mas ele usa camisinha. Ele  queria sem, mas eu não quero ter filho, eu não tenho condições  de ter as coisas ainda.” “Tô andando com uma menina  muito safada, ela transa com todo mundo. Eu   não faço assim.” 
                              . Durante o percurso, que foi feito à pé, Laura em certo  momento pára em frente de  um espelho de  carro, fica se olhando, coloca as mãos nos seios e sorri. Laura não quer falar  dessa situação. Um paciente mostra-se interessado em Laura. Ele puxa conversa com  ela, mas Laura permanece silenciosa. Em uma das assembléias de organização do  circulando, um  paciente tenta agarrá-la.  Laura recua, coloca as mãos nos seios e sorri sem dizer nada. Laura continua  falando do namorado quando perguntada. Conta que ele vai a sua casa, que ficam  juntos.
                              . Outras atividades para o projeto circulando sugeridas por Laura  e que aconteceram de maneira intercalada às   propostas dos demais pacientes foram tomar sorvete e ir ao zoológico/Belo  Horizonte. Primeiramente optamos  por tomar  sorvete. Na avaliação dessa atividade, observamos que  Laura já começa a esboçar algo que revela a  sua maneira de perceber as situações. “ Eu gostei de tomar sorvete , mas achei  ridículo o M(também participante do circulando) gritar na rua.” A partir de um  passeio no Shopping, Laura também já se coloca dizendo: “ quero voltar nesse  Shopping e comprar balas e bombons.” 
                              . Quanto a sua idéia de irmos ao Zoológico,  os integrantes do circulando  receberam com entusiasmo. Trabalhamos para que  essa proposta fosse levada à gerência do Cersami pela própria Laura. Em  seguida, fizemos vários contatos para viabilizá-la.  Telefonemas e ofícios também foram realizados.  Finalmente, o passeio foi programado. A expectativa foi grande. A mãe de Laura  nos conta que a filha não conhece o Zoológico  e que nunca à levou em Belo Horizonte. Foi  muito bom ouvir da própria Laura na reunião de avaliação do circulando feita  com os pacientes e os familiares,  que o  que  ela mais gostou no decorrer do ano  foi conhecer o Zoológico, em Belo Horizonte. 
                              . Nas assembléias de organização e avaliação do projeto,  Laura já começa a ficar mais à vontade e conta que no final de semana foi  à casa de uma amiga: “ ficamos dançando” e  por fim diz: “eu não tenho namorado. Avaliamos que essa fala foi extremamente  significativa e apontava para mudanças em seu quadro, pois até então, Laura  chegava em todas as atividades contado de situações que envolviam “seu  namorado”. 
                              . Mediante demandas  de  alguns usuários do projeto circulando, definiu-se  que iremos acompanhá-los no processo de  confecção de documentos, tais como a carteira de identidade. Laura  não tem carteira de identidade e mostra  interesse em fazer esse documento. A partir de uma conversa com os pais e os  técnicos de referência desses pacientes, falamos da proposta do projeto (naquele  momento)  de colaborar com aqueles que  estavam demandando esse documento de modo que eles participassem diretamente  desse processo, conhecendo cada uma das instituições envolvidas nele,  construindo assim uma maior autonomia na realização de suas necessidades. 
                              . Os técnicos de referência avaliaram como positiva a  proposta. Esse processo foi longo e exigiu várias idas e vidas ao Conselho  Tutelar, Secretaria de Assistência Social/Semas, lojas de fotos, delegacia e correio.  E foi dentro desse processo que Laura fez sua  carteira de identidade. Algumas falas dos meninos foram importantes para que  pudéssemos trabalhar com eles  o  significado desse  documento: “ carteira  de identidade é para quando ficar mais velho”; “ é para poder andar de ônibus”;  “ é um documento que temos que ter para mostrar a polícia se ela chegar na  gente”; “ identidade é para identificar”; “ é para entrarmos nos lugares” e  assim por diante.. 
                              . Em outras atividades, Laura busca   aproximar de R, uma adolescente,   extrovertida e falante. Em certo momento, Laura anda de braço dado com R  e mostra-se mais  à vontade. Conta das  coisas que gosta,   que foi ao parque de  exposição  com a família, diz que gosta  da escola e pretende retornar a mesma, gosta da biblioteca e da quadra da  escola, de filmes cômicos, tais como os filmes de “Didi”. No entanto, Laura  ainda continua com risos imotivados  em  várias situações. E quando abordamos a questão ela não responde.
                              . Considerando que os usuários do Circulando são de distintos  bairros, definimos junto com os pacientes que uma outra  diretriz do circulando no decorrer desse ano seria  realizar atividades  na   comunidade  de cada  participante. Mediante um levantamento de  demandas dos pacientes quanto a  cursos  profissionalizantes, programas sociais e culturais,    tais como dança e música  acordamos com eles  que faríamos visitas à Secretaria de Assistência  Social/Semas, na região de moradia de cada um deles, pois essas instituições oferecem  uma série de cursos, programas sociais e culturais.  A partir dessa proposta um dos locais  visitados foi a Semas  Citrolândia, situada  na região de moradia de Laura.
                              . Durante a visita feita à  Semas Citrolândia , Laura ia apontando e falando dos diversos lugares de sua  comunidade. “ Lá é o posto de saúde;  ali  é o cemitério onde meu avô e meu primo foram enterrados, lá é o supermercado” e  segue reconhecendo e apresentando as instituições e locais que compõem o  cenário de seu dia-a-dia e que formam sua identidade cultural e social.  Nessa atividade houve uma boa interação dos  meninos do projeto circulando  com os  usuários da Semas, sejam eles  do Pet –  Programa de Erradicação do Trabalho Infantil ou do Agente Jovem. Laura e demais usuários moradores do  Citrolândia foram convidados para participar das atividades da Semas  Citrolândia, sendo que uma delas eram  aulas de  capoeira. 
                              . Contudo, Laura  e o seu  irmão mostraram interesse pelo programa Agente Jovem. Assim, retornamos à  Semas  em um outro momento, dessa vez com  a mãe de Laura  e a sua inscrição para o  Agente Jovem foi efetuada. Sua mãe diz : “ meus   filhos só ficam em   casa. Acho bom o Projeto Circulando porque Laura não têm  amigos, e quando passeia distrai, conhece outras pessoas. Ela teve depressão  forte, ficava em casa isolada, acho que sua depressão foi de tanto ficar em casa. No bairro não tem  nada para fazer, a escola é longe, moramos perto da rodovia. Moro aqui há muito tempo, e nem sabia que  tinha esses programas aqui no bairro” “... também não sabia que tinha  biblioteca,  oficinas de bordado, de  música...” 
                              . Laura participou de várias outras atividades do Circulando  no decorrer de 2007. Se na avaliação da visita à Semas Centro  disse que o melhor foi deitar na grama do  jardim; no passeio à praça do Brasiléia, o bom mesmo foi escolher o sabor do  geladinho;  na visita ao Sítio Azul  preferiu correr atrás da bola em um jogo de futebol com os meninos que  participavam de programas sociais naquele local; mas na Apae Rural trocou tudo  isso por uma longa conversa sobre cavalos com Robson(também participante do  circulando), mostrando-se um pouco  mais  extrovertida e segura de si; na área de lazer do restaurante Rancho Alegre, não  deu outra: Laura fez várias poses para fotos;   já nas atividades da brinquedoteca concentrou-se na apresentação de teatro;  e na Semas do PTB não resistiu ao ritmo do hip  hop  e caiu dança com  os meninos de uma oficina de música que  participavam dos programas dessa instituição.
                              . Laura participou também de várias atividades no Centro de  Convivência  da Saúde Mental de Betim  –Estação dos Sonhos.  A partir de uma  proposta do curso de Enfermagem da PUC – MG de  Betim, começou   a acontecer nesse local toda 2 feira atividades educativas, culturais  e lúdicas realizadas pelos alunos de  enfermagem, sob a responsabilidade da PUC-MG. Laura e demais usuários  manifestaram vontade de participar dessas atividades e passamos, então, a  freqüentar com maior assiduidade o Centro de Convivência da Saúde Mental de Betim  – Estação dos Sonhos. Participamos de várias    oficinas nesse espaço. Uma dessas  oficinas foi a do salão de beleza. Nela foi trabalhado questões ligadas a auto-estima  , atividades lúdicas e no final todos ganharam um kit com produtos de beleza. Nesse espaço, Laura mostrou-se mais  falante e ainda que timidamente, chegou a conversar com outros usuários da  saúde mental. Em uma dessas atividades saiu de lá toda maquiada e sorridente com  essa nova possibilidade.
                              . Um evento que também aproximou muito os usuários do Projeto  Circulando pela Cidade do Centro de Convivência  foi sua festa junina, principalmente os  ensaios da quadrilha.  E por falar em  festa junina, Laura dançou quadrilha tanto na festa do Centro de Convivência  como na do Cersami. Participou das oficinas de confecção de seu vestido de quadrilha, dos  ensaios e da organização da festa. Também através das ações do  Projeto Circulando ajudou a escolher e  comprar as prendas que seriam  dadas em  nossa  festa junina.  
                              . Avaliamos que essas atividades do “Circulando”, no Centro  de Convivência foram  fundamentais para a  aproximação dos usuários da saúde mental infanto-juvenil desse dispositivo, que  geralmente  é usado pelos adultos. Um dos  grandes desafios que temos na saúde mental infantil em Betim é justamente o  processo de transferência de nossos pacientes quando completam 18 anos para o  serviço de saúde mental do adulto, pois na maioria das vezes eles têm grande  dificuldade de constituir uma nova referência com os serviços que vão  atendê-los depois dos 18 anos. Sendo assim, acreditamos que  essas atividades do “Circulando” são mais uma  possibilidade  para que os usuários do  Cersami conheçam os usuários adultos, seus técnicos e também o espaço do Centro  de Convivência, iniciando-se assim um processo de “transferência” e apropriação  do mesmo.
                              . Outro aspecto que merece destaque na trajetória de Laura  no Circulando foi sua atuação como ajudante  em algumas de nossas atividades. Não só Laura, mas todos usuários que quiseram, tiveram oportunidade de  ficar nesse lugar por algum momento. A sugestão de ter um usuário como ajudante  em cada atividade veio dos  próprios  participantes. Laura foi indicada pelos demais pacientes  para ocupar esse lugar quando fomos a Casa de  cultura de Betim, o que aceitou de bom grado. Lá procurou acompanhar R. para  tomar água, o que lhe conferiu uma certa liderança. Aspecto importante, já que  ela se mostrava muito introvertida. Laura, nos ajudou também, lembrando a todos,  de jogar os copos descartáveis no lixo ou mesmo chamando nossa atenção para  quando um paciente começava a se afastar do grupo. Laura mostrou-se satisfeita  nessa função, passando a  emitir mais  opiniões, falando em tom mais alto, contribuindo e solicitando  dos demais usuários cooperação durante a atividade . 
                              . Nas assembléias de avaliação e organização das atividades do  circulando, Laura passou a se colocar mais, fazendo comentários sobre os  lugares, as pessoas, suas atitudes, sobre os demais pacientes, bem como, do seu  jeito de  ser. Percebemos que, com a convivência dela com os usuários do projeto e  também com as pessoas que conhecíamos em cada  local que íamos, Laura se conhecia e se reconhecia mais.  Pouco antes de seu desligamento do projeto, no final de 2007,  Laura que até poucos meses atrás se mostrava  uma menina passiva e calada, extremamente introvertida, voz quase inaudível,  começa a revelar outras faces de seu ser: e em  certa ocasião diz: “ eu não sou tão quietinha assim, as vezes apronto, brigo  com meu irmão, apronto com minha mãe ...“ Enfim, sua presença foi se tornando  cada vez mais presente.