Os casos de psicose extraordinária evidenciam o  funcionamento do real do sintoma a céu aberto, prevalecendo a desorientação do  gozo sem anteparo do Nome do Pai, tal como nas experiências de corpo  despedaçado, sem bordas, como nos mostra o caso Abrahão e sua vivência problemática  com o corpo e suas tentativas de solução que não correspondem a medidas  padronizadas. O caso também demonstra como a presença de um praticante da  psicanálise lacaniana numa instituição de saúde mental visa zelar pelo trabalho  singular do sujeito na busca de medida para seu gozo, apesar de seu contexto  sanitário e as tecnologias ofertadas pelo discurso científico de controle  populacional.  
                          Com Freud e Lacan sabemos que o gozo advindo do sintoma é a  parte que indica o mal estar constituinte de cada um e da civilização,  mostrando que algo não funciona, mantendo a desarmonia. Diante desse mal estar,  índice do sintoma correlato ao gozo, a psicanálise encontra seu lugar ao se  ocupar daquilo que não funciona (LACAN, 1974/2004). A psicanálise nos indica também  que é no sintoma que está o singular de cada sujeito. Lacan (1975-76/2007)  refere-se ao sintoma como um modo do ser falante se sustentar na vida. Uma de  suas definições sobre o sintoma destaca a vertente de satisfação libidinal, o  modo de gozo de cada um. A psicose orientará o final do seu ensino, tendo em  Joyce a noção de sintoma como função que fixa o gozo. Assim, a noção de sintoma  vai além do sentido a ser decifrado, considerando também sua vertente real  enquanto dispositivo de gozo, de modo de satisfação da pulsão. Nessa conjuntura  encontram-se outras formas de respostas, de tratamento ao mal-estar causado  pela desordem pulsional, tal como a idéia do saber-fazer com o sintoma, o qual  tem um caráter de invenção ou artifício, servindo para ancorar o gozo (LACAN,  1975-76/2007). O saber-fazer de Abraão com o excesso de gozo sintomático nos  mostra seus artifícios pela via do objeto reciclado, tal como veremos a seguir.  
                          Abraão é paciente da rede de saúde mental de uma cidade do  Brasil desde 1998.  
                          Nos últimos anos passou a acumular  “lixo” em sua casa, provocando a presença de roedores, o que levou os vizinhos  a denunciarem a situação. Os primeiros anos de seu tratamento foram marcados  por graves passagens ao ato de cortar o pescoço, tentando se matar devido ao  mau cheiro que exalava de seu corpo - cheiro  da AIDS, o qual iniciou com o desencadeamento da psicose aos 40 anos de  idade, após uma cirurgia de fimose. Encontro problemático com o real da  castração que passou a ser experimentada pelo gozo desregulado, cuja solução  foi a castração no real do corpo.  
                          Até o desencadeamento da psicose sua vida era em torno do  trabalho de pedreiro, casamento, grupo de pagode onde tocava pandeiro e uso de  etílicos desde a infância. Até então, sustentava-se numa identificação  imaginária com o pai que tocava pandeiro e bebia muito, levando-o, ainda  criança, para as rodas de samba onde iniciou o filho no uso de etílicos. Quando  essa identificação não mais o sustentou, o uso de etílicos ganhou outra função  - amenizar as vivências delirante-alucinatórias.  
                          Com a morte do pai (2007) surgiu outra solução delirante:  vigiar a cidade andando de forma imperativa pelas ruas, só parando quando caía  embriagado. Depois começou a recolher objetos e restos de materiais que  encontrava pelas ruas, nomeandoos de recicláveis, e os levava para casa,  entulhando-a a ponto de o único espaço livre ser o lugar que cabia o seu corpo  para deitar. Algo aí se operou delineando pontos de ancoragens exteriores ao  corpo através da materialização dos objetos, mas ainda problemático, pois a  casa era o limite para os mesmos e estes para o seu corpo.  
                          Assim, foi acionada uma rede de dispositivos públicos para  resolver o caso: Vigilância Sanitária (protocolo de risco para a saúde da  população), Limpeza Urbana (retirar o lixo), Assistência Social (benefícios  sociais). Essas medidas não surtiram efeito, pois Abraão resistia a elas, sendo  a Saúde Mental aí convocada.  
                          Após anos de tentativas de tratamento sem efeitos  importantes para Abraão, era preciso buscar outras possibilidades para  conduzi-lo. Essa condução do tratamento estava orientada pela noção de desejo  do analista, o qual é fundamental na formação dos praticantes da psicanálise  que trabalham em instituições, sendo importante a existência de psicanalistas  nesse meio, mas não o discurso psicanalítico na posição de mestria, concorrendo  com os outros discursos ali existentes. Dessa forma, cada analista poderá  empreender uma ação que zele pelo detalhe que surge e caracteriza cada caso  como único nesse contexto pulverizado por muitos saberes. Tal como comenta  Miller (s/d), nos novos contextos e nas instituições, os analistas devem ser  como objeto nômade e a psicanálise como uma instalação portátil, suscetível de  deslocar para esses lugares. Ele diz que o lugar analítico possível na  instituição é o que ele nomeia de um Lugar Alfa, o qual é um lugar de respostas  e formulação de questões que tem a ver com o saber do inconsciente e  estabelecimento da transferência. Orientada por essa perspectiva é que, a  partir do convite de Abraão, passei a atendê-lo em sua casa. Nesses encontros  evidenciou-se a função da reciclagem do lixo nesse caso. Configurava-se aí um  movimento de separação mínima de sua posição de objeto-resto numa tentativa de  reciclá-lo (ZENONI, 2011), cessando a castração no real do seu corpo. Porém,  não conseguia dar vazão ao lixo acumulado, sendo importante uma parceria para  ajudá-lo nesse movimento. O reciclável como a singular solução de Abraão de  tratar a seu corpolixo foi a pista que orientou o tratamento e o processo de  intervenção em sua casa, sendo isso transmitido nos encontros com os vários  dispositivos para a construção do caso clínico. Houve, então, uma flexibilidade  nas prescrições protocolares: alguém o ajudava a separar o material e a Limpeza  Urbana levava Abraão para efetuar sua venda. Ele percebeu que o material era  pouco valorizado no comércio e isso o fez se declinar da ideia de recolher  objetos. A Vigilância Sanitária foi demandada por ele para exterminar os ratos.  Ele passou a me procurar mais para dizer da situação precária de sua casa e  solicitar aposentadoria.  
                          Atualmente Abraão quase não acumula lixo, mantendo-se um  resto num canto de seu quarto. Começou a acolher em casa os companheiros de  bebida moradores de rua e guardar alguns objetos deles de forma intercambiável.  Assim, foi possível fazer caber nas medidas sanitárias algo da singular solução  de Abraão - contornar o excesso do seu corpo-lixo via operação do objeto  reciclado.   
                          REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:  
                          LACAN, J.  (1974/2004) Entrevista publicada revista Magazine  Literraire (Emilio Granzotto: revista Panorama).  
                          LACAN, J.  (1975-76/2007) O Seminário Livro XXIII: o  sinthoma. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed.  
                          MILLER,  J.-A. Rumo ao PIPOL 4. Correio – Revista da Escola Brasileira de Psicanálise,  no. 60. EBP, s/d, p. 07-14.  
                          MILLER, J-A.  Conclusão do PIPOL V. Site enapol   
                          ZENONI, A. (2011) Rêves, idéaux, et  usages de l’instituition.  Le Bulletin  électronique de l’Uforca pour l’Université populaire Jacques Lacan, 15 novembre  2011. http://www.lacan-universite.fr/lebulletin/2011/11                           
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