Uma breve descrição do Programa de Atenção  Integral ao Paciente Judiciário                          
                          São inúmeros os relatos de noticiários de pessoas que, sem  motivo aparente, exterminam de forma brutal e incompreensível familiares, ou  até mesmo terceiros com quem não tinham contato algum. Muitos desses  aparentemente não possuem explicação plausível. O autor do crime, muitas vezes,  no imaginário social, transforma-se em um sujeito perigoso e temido. Como  consequência social do ato, muitos defendem a prisão perpétua, a internação ou  até mesmo a pena de morte, temerosos de conviver com essas pessoas no meio  social.   
                          Depois de cometido um ato por lei considerado crime, é  iniciado um processo contra o acusado de ser o autor. A partir de algumas  suspeitas, durante o curso do processo instaurado contra o acusado, é possível  que seja determinado que ele se submeta ao chamado “exame de sanidade mental”.  O juiz nomeia dois peritos, médicos psiquiatras, cuja tarefa é atestar sobre a  sanidade ou insanidade mental do sujeito em questão referindo-se ao momento do  ato. Se avaliado pelos peritos que, no momento do ato, o agente, por doença  mental era “inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de  determinar-se de acordo com esse entendimento” (art. 26 do Código Penal), ele  será considerado inimputável. Consequentemente o juiz poderá proferir uma  sentença de medida de segurança em lugar de uma pena. A medida de segurança  compreende a internação ou o tratamento ambulatorial, conforme for o crime.   
                          Teoricamente, a principal finalidade da medida de segurança  seria o tratamento. Se a medida de segurança for de internação, o paciente será  encaminhado a um Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico por tempo  indeterminado e só poderá sair se passar por uma perícia médica chamada de  “cessação de periculosidade”.  
                          A  periculosidade refere-se a um homem que está determinado, não tem escolha,  move-se por causas que o alienam em relação aos próprios atos e, portanto, não  pode ser censurado, nem responsabilizado, deve ser tratado, ressocializado.  Essa noção está relacionada ao “(...) perigo para os outros ou para a própria  pessoa, e não ao conceito de periculosidade penal, limitado à probabilidade da  prática de crimes.” (ZAFFARONI & PIERANGELI, 2002. p. 114-118, p.856).   
                          Barros (2004) alerta-nos sobre o processo de alienação que  acompanha a utilização do conceito de periculosidade, pois, este é tomado como  natural e mantido com a função de legitimar as práticas jurídicas. O Estado  “racional” apoia-se nessa noção na tentativa de objetivar o que na verdade não  tem controle e que reflete um vazio de saber que ameaça a ordem social.   
                          O modelo positivista da Criminologia, utilizado para  explicar a criminalidade, inaugurou a parceria das Ciências “Psi” (Psiquiatria  e Psicologia) com o Direito. Essa escola passou a considerar o comportamento do  homem delinquente como determinado, buscando os fatores biológicos e  psicológicos que levariam ao crime. Dentro dessa perspectiva, o delinquente  será considerado, a partir de então, um indivíduo diferente, anormal. Os  médicos e psicólogos herdariam dessa escola a tarefa de detectar os  
                          
                            “aspectos patológicos”, a  “personalidade inadaptada ao meio” dos criminosos e a periculosidade dos  considerados inimputáveis.   
                           
                          O sujeito considerado perigoso é condenado à exclusão da  qual não pode ao menos se defender, pois para o Direito, como inimputável ele  não possui a cidadania plena. Durante anos, os chamados inimputáveis foram  “depositados” em instituições, perdendo o contato com familiares e os laços  sociais. Como sem tratamento adequado, nunca receberam o laudo de cessação de  periculosidade e, portanto, não deixaram o hospital. Tratava-se de uma reclusão  indeterminada que não cumpria a função de tratamento.  
                          Em 1999, estagiários de psicologia realizaram uma pesquisa  no Tribunal de Justiça de Minas Gerais orientados pela psicóloga judicial  Fernanda Otoni de Barros. A pesquisa consistiria em um levantamento dos  processos criminais no quais havia instalação do incidente de insanidade mental  e medida de segurança. Como fruto da pesquisa seria proposto o Projeto de  Atenção Interdisciplinar ao Paciente Judiciário.   
                          Em 2001 publicava-se no Tribunal uma portaria criando o  Programa de Atenção Integral ao Paciente Judiciário, o PAI-PJ. O Programa,  atualmente, acompanha pacientes que respondem a processo criminal na comarca de  Belo Horizonte. Há, inclusive, ações do PAI-PJ e do Tribunal de Justiça para a  implantação de novos PAI-PJ em comarcas do interior de Minas Gerais.   
                          O PAI-PJ tem como objetivos promover a mediação entre rede  pública de saúde mental e o judiciário; vincular o paciente à rede pública de saúde  mental; acompanhar o tratamento e viabilizar a inserção social do paciente.  Para isso conta com uma equipe interdisciplinar composta por psicólogos,  assistentes sociais e assistentes jurídicos.   
                          Os casos são encaminhados por meio de ofício do juiz criminal  ou de execução criminal, determinando que sejam acompanhados, ou, então,  familiares, estabelecimentos prisionais, instituições de tratamento em saúde  mental e outras que solicitam uma avaliação para verificação da possibilidade  do acompanhamento.  
                          O processo de acompanhamento é iniciado a partir da  realização de uma avaliação jurídica e psicológica do paciente, quando não há  ainda o sentenciamento da medida de segurança ou não havendo incidente de  insanidade mental instaurado, o que já torna o acompanhamento do programa  indispensável e espontâneo. Constituindo-se um caso de acompanhamento,  encaminha-se o paciente à rede pública de saúde mental, em caso de não haver  esse processo em curso. Em conjunto com a rede, o projeto terapêutico do  paciente é construído e constantemente revisto e reconstruído, de acordo com as  indicações subjetivas do próprio sujeito. O acompanhamento do paciente ocorre  durante o processo criminal até a finalização da execução penal.   
                          A equipe do PAI-PJ é considerada auxiliar do juiz uma vez  que encaminha pareceres informando sobre o acompanhamento do paciente e, a  partir deles, o juiz dá andamento ao processo, tomando decisões de acordo com a  especificidade do caso.   
                          Além disso, a equipe atua em estreita parceria com os atores  envolvidos no cuidado ao portador de sofrimento mental, tais como a rede  pública de saúde, rede pública e privada de assistência social, Universidades,  organizações do terceiro setor e outros, além das equipes das instituições  prisionais. As discussões são permanentes e os casos acompanhados pelo PAI-PJ  são conduzidos com os profissionais responsáveis inclusive a partir dos  diversos fóruns promovidos por esses setores. O PAI-PJ nesse contexto é  considerado como mais um ponto da rede. Trata-se da chamada clínica feita por  muitos e a direção dada é extraída da construção do caso que coloca em destaque  o saber do sujeito. A partir do vazio de saber da escuta implicada da equipe  podem surgir novas soluções.  
                          Privilegia-se  a escuta cuidadosa de cada sujeito. O PAI-PJ pode ser considerado mediador  entre a clínica e o jurídico. A direção do caso é construída a partir do saber  do sujeito, é ele quem orienta o trabalho da psicologia que ocupa uma posição  de báscula entre a sustentação do trabalho do Juiz e a representação do saber  do sujeito na construção de novas saídas.  
                          Como propõe Barros (2003), o ato jurídico é utilizado como  operador clínico. Nesse sentido, entende-se que a passagem ao ato é uma  presença maciça do gozo, um produto da ação fragmentadora da pulsão de morte em  um trabalho de desgarramento do sujeito do Outro, mas, ao mesmo tempo e de  forma dúbia, uma última solução para o sofrimento, um pedido de socorro.  Partindo desse princípio, o Direito pode funcionar como um meio para tratar o  gozo e conseqüentemente oferecer a possibilidade do resgate do laço social. É  possível que o ato jurídico produza um contorno para o que surge fora da lei,  conduzindo o sujeito para a formulação de um sentido no lugar do ato.   
                          Pela linguagem, pode-se tratar o gozo por uma via de  simbolização. A medida jurídica situa-se num ponto que pode orientar. A  responsabilização do sujeito na psicose não surge aliada à culpa, mas ao  assentimento a responsabilidade e implicação com o ato, o que é capaz de  produzir novas formas de engate ao Outro. Segundo Barros, “A presença de um  analista [...] não será sem conseqüências, pois o sujeito pode se servir desse  dispositivo na montagem de um Outro razoável, franqueador dos modos de conexão  com a ordem pública.” (BARROS, 2004, p.83) Assim, cria-se a possibilidade de  que a alteridade permaneça aberta para convocar no sujeito novas soluções,  dentro do que o ordenamento jurídico preceitue, em uma articulação responsável  com a lei .  
                          A incidência da lei sobre os casos de psicóticos que  cometeram ato criminal coloca em jogo novos dispositivos para o manejo das  clínicas das psicoses (BARROS, 2003). Frente a frente, ato criminal e ato  jurídico se confundem na produção de um operador clínico único para o  tratamento das psicoses. Essa interface cria condições para funcionamento do  mecanismo de escuta do analista, como um mediador entre a clínica e a  autoridade judicial.   
                          O PAI-PJ é alicerçado por uma clínica feita por muitos, que  tem sua fundação enraizada no “Um” ato judicial. Pode-se dizer que nessa equipe  há um corpo de palavra que circula, marca do discurso analítico que figura como  orientação para atuação desses profissionais. Nesse sentido, “os muitos [...]  são solidários na interrogação que cada um porta” (CIACCIA, 1999, p. 64).   
                          Amparado pela lógica e pelo saber de muitos, o PAI-PJ conta  com uma equipe constituída por assessores jurídicos, assistentes sociais,  psicólogos e estagiários de psicologia. A equipe jurídica é responsável pela  interpretação do texto da lei na orientação do paciente sobre o processo. O  serviço social oferece soluções na obtenção de recursos, fazendo  encaminhamentos da família e do paciente para aquisição de benefícios e  documentações. A equipe de psicologia realiza o acompanhamento psicológico,  promovendo a inserção dos pacientes na rede pública de saúde. Além disso, os  psicólogos e estagiários de psicologia do programa realizam o acompanhamento  terapêutico, uma modalidade de clínica que permite ao paciente a circulação por  diferentes espaços sociais. Sem dúvida, esse é um dispositivo central no  trabalho do programa.                           
                          O histórico de construção da clínica de  Acompanhamento Terapêutico (AT)                          
                          O acompanhamento terapêutico (AT) nasceu como modalidade  clínica reconhecida em 1970, em Buenos Aires (SANTOS et al, 2002). Esse dispositivo  clínico surgiu a partir da necessidade institucional de restituir ao indivíduo  sua autonomia. Na época de sua aparição o acompanhante terapêutico era chamado  de amigo qualificado. Era tarefa dele trabalhar inserido diretamente nas  vivências conflituosas do paciente.   
                          Em função da inadequação da nomenclatura escolhida, logo  houve uma substituição do termo amigo qualificado pelo termo atendente  terapêutico e, posteriormente, pelo termo acompanhante terapêutico.  Naturalmente, isso ocorreu devido ao vínculo de simetria especular que o termo  inicial sugeria, isto é, uma relação de afeto reduzida as qualidades de uma  amizade, sem os elementos técnicos que essa relação deve pressupor.   
                          O AT era indicado para pacientes em crise até o momento de  estabilização do sujeito. Nessa época, o auxiliar psiquiátrico, como também era  chamado o acompanhante terapêutico, chegava a passar 12 ou até 24 horas diárias  com o paciente. Esse excesso de presença na experiência do outro, refletia  ainda a reprodução da lógica asilar das instituições na casa do próprio  paciente. Somente depois de algum tempo é que o acompanhamento terapêutico  começou a se dissociar das instituições psiquiátricas para ser então utilizado  como dispositivo auxiliar do processo terapêutico (MAIA & PIRIM, 1997).   
                          Em nosso país, essa prática surgiu atrelada às comunidades  terapêuticas. Destacava-se entre elas a Clínica Pinheiros, em São Paulo (MAIA  & PIRIM, 1997). Mas nessa época havia uma concepção teórica limitada do  trabalho de acompanhamento terapêutico, relacionada apenas à definição teórica  de que o acompanhante terapêutico era uma figura sujeita às identificações  imaginárias e a posição invasiva do Outro.  
                          Somente a partir de 1997, com o  trabalho da “Clínica Urgentemente”, que buscava facilitar a circulação de seus  pacientes, o dispositivo de AT foi retomado e desenvolvido teoricamente. Isso  permitiu que o AT recuperasse seu lugar de importância no tratamento de  pacientes portadores de sofrimento mental, principalmente, no processo de  desospitalização e reinserção social dos pacientes.       
                          O acompanhante terapêutico pouco a pouco foi se  diferenciando do profissional de enfermagem devido às especificidades de seu  trabalho e de seu objetivo último de levar o sujeito a estabelecer laços  sociais. Atualmente o acompanhamento terapêutico é preponderantemente exercido  pelos profissionais psi. (MAIA & PIRIM, 1997)                           
                          A teoria da técnica                          
                          Em linhas gerais, o AT ocorre de modo paralelo à clínica  convencional que faz uso do setting terapêutico. A inserção do paciente nesse  tipo de prática confere ao profissional uma atuação potencialmente  transformadora, capaz de incidir sobre toda uma rede de sentidos psicossociais  sempre enraizadas as tramas do desejo. Nesse sentido, os caminhos percorridos  no AT acontecem com o estabelecimento de um espaço de troca entre o paciente, o  profissional, a família, o bairro e a cidade. (GUERRA & MILAGRES, 2005)   
                          Esse dispositivo coloca o sujeito diante do impasse do real  para que ele construa versões particulares de ligação com o social. O paciente  é convocado a fazer suas escolhas, saindo do lugar de objeto na relação com o  Outro e escapando de jogos de poder ou de assujeitamento afetivo. O que se  espera disso, é que seja construído um campo de emergência da singularidade,  onde se articule o desejo. Para tanto, é fundamental que o sujeito seja  responsabilizado por seus atos, por seus objetos de desejo, mesmo que nos  momentos de maior desorganização e de atuação. O engajamento da subjetividade  do paciente em um processo clínico como esse requer a existência de uma escuta  que privilegie o sujeito do inconsciente.  
                          O AT ocorre, normalmente, a partir de uma demanda terceirizada,  isto é, de um pedido de um outro que não o paciente. Porém, essa demanda  precisa ser de alguma forma articulada pelo sujeito. A reconstrução da demanda  articulada com o desejo do paciente faz aparecer a dimensão da responsabilidade  e um vínculo razoável com o acompanhante.               
                          Diante da crise, que endereça um pedido desesperado de  socorro, o analista deve manter uma espera ativa, que assegura o lugar de  testemunha daquilo que o sujeito constrói pela via delirante. O silêncio é a  barra posta do lado do Outro que demanda que o sujeito se apresente, que faça  uso da palavra. Nesse sentido, abre-se um campo que dá lugar ao discurso do  sujeito.  
                          Acompanhar terapeuticamente implica necessariamente que o  acompanhante invista seu desejo no tratamento, fazendo aparecer uma implicação  de reserva (FIGUEIREDO & COELHO, 2000). Isso envolve diferentes aspectos,  tais como, lidar com situações de risco social, enfrentar acontecimentos  inusitados, estar disponível para transitar em espaços desconhecidos, ir ao encontro  do paciente na rua ou em sua casa. E ainda, manter um espaço estável e contínuo  para que com a constância cronológica de acontecimento do processo seja  construída uma referência temporal para o paciente. Essas atitudes bordejam o  gozo que transborda no sujeito e ajudam a regular a ansiedade do sujeito.  
                          Além desses aspectos, deve-se considerar que a equipe de  acompanhantes se mantenha estável e que a palavra circule como um corpo  simbólico na relação com os demais integrantes da equipe de profissionais que  acompanha o caso. Isso ajuda a pulverizar a transferência, fazendo circular o  saber e a escuta na equipe.  
                          Podemos dizer que o AT requer que o profissional coloque em  jogo sua vivacidade, para o sustento da relação transferencial e o surgimento  dos espaços de palavra. Nesse sentido, o desejo do acompanhante é que sustenta  o desejo do sujeito. As apostas, os investimentos, nas soluções apontadas pelo  paciente, mesmo que sutis, abrem caminho para construção de um projeto  terapêutico fundamentado pela subjetividade. Sem dúvida, pautar a direção do  tratamento no desejo do próprio sujeito é o mesmo que fazer com que ele se  responsabilize pelo seu tratamento o retirando do lugar de objeto alienado na  relação com o Outro.  
                          Partindo da ética da técnica psicanalítica, o AT pode trazer  ganhos significativos à evolução dos pacientes, agindo na limitação da  cronicidade, minimizando a marginalização e aumentando as possibilidades de  rearticulação social.   
                          A clínica de rua realizada pelo acompanhante terapêutico comporta  uma dimensão pedagógica. Trata-se, contudo, de uma pedagogia da subjetividade,  comprometida com as soluções apontadas pelo paciente e voltada para o seu savoir  faire. Essa é única vertente educativa que a psicanálise é capaz de  desempenhar e segundo a qual o sujeito é impelido a revisitar seu próprio  desejo.  
                          Embora o acompanhante terapêutico não ocupe o lugar do  analista, também cabe a ele exercer a escuta que assegura a construção de  elementos que possam ajudar na solução de alguns impasses do tratamento. Em  consonância com o trabalho de análise, o acompanhante terapêutico deve  considerar a realidade psíquica do sujeito, sem confrontação com suas  construções delirantes, isto é, colocando-se como secretário e testemunho. Isso  porque,  
                          Não temos razão alguma para não aceitar como tal o que  ele nos diz [...] o discurso revela-nos seguramente uma dimensão constitutiva  [...] é a distância entre o vivido psíquico, e a situação semi-externa em que,  em relação a todo fenômeno de linguagem, se acha não somente o alienado, mas  qualquer sujeito humano. (LACAN, 1955-56/2008, pp. 243-244).                           
                          Com esse trabalho, cria-se uma moldura simbólica a partir de  uma esfera de atividade psíquica com a qual o psicótico possa se articular com  a vida social. Isso só é possível quando o acompanhamento terapêutico incentiva  que o sujeito tome a palavra construindo soluções simbólicas para aquilo que se  apresentava no campo da passagem ao ato, ou seja, em um nível pulsional  mortífero.  O contrato terapêutico, aquilo que se combina entre paciente e  acompanhante, é um tipo de molde simbólico e presentificação mínima da lei a  partir da articulação da palavra.  
                          Podemos entender que a ordem simbólica reúne o conjunto de  regras sociais, a cultura e as leis que se expressam por um código significante  que antecede o sujeito. Como nos esclarece Lacan (2003) o dizer, a verdade por  trás do sentido, se articula com o dito que o ex-siste, o que esclarece que o  simbólico está posto antes do sujeito. O analista faz o dizer ocupar o lugar do  real, ele traz à tona o verdadeiro discurso. O impossível do dizer, presente na  fala do psicótico, é o que revela a estrutura, ou o real que vem a luz na  linguagem. (LACAN, 2003). Na psicose, o funcionamento do campo simbólico é  precário e os dizeres dos imaginários predominam sobre o sujeito. O  acompanhante terapêutico entra nessa articulação em favor do resgate mínimo de  simbolização, algo capaz de enlaçar o sujeito com o social, recolhendo os ditos  do sujeito para consolidação de uma organização viável (MILLER, 2000).    
                          Esse dispositivo clínico cumpre ainda outras funções. O AT  retira o analista da marginalização social, do lugar inútil de especialista da  desidentificação, e, ao mesmo tempo, o coloca no lugar de analista cidadão,  aquele que atende a uma comunidade de interesses localizada entre o discurso  analítico e a cultura, saindo da reserva de seu consultório para assumir a  posição de participação, sensível as mais diversas formas de segregação  (LAURENT, 1999). O AT é uma prática inserida no cenário da reforma psiquiátrica  brasileira. Somado ao discurso analítico esse dispositivo pode ser tomado como  uma resposta do analista cidadão as formas de segregação presentes no campo de  saúde mental.  
                          Saindo dos consultórios e deixando de se aplicar somente às  classes privilegiadas, a psicanálise encontra um novo lugar no contemporâneo,  um lugar útil frente aos conflitos próprios à sociedade. Sem dúvida, isso  implica que se lance mão de uma nova lógica que considere o sintoma de cada  sujeito em sua singularidade. Desse modo, a melhor forma de se colocar no  tratamento é se oferecendo como objetopsicanalista, como vazio ativo que  carrega um nada querer a priori e sem preconceito, para que disso o  sujeito possa fazer um bom uso. Ao se apresentar desse modo a psicanálise se  coloca fora do registro das contra-indicações, respondendo de maneira adequada  ao real contemporâneo. (MILLER, 2000)  
                          É preciso enfatizar que o  dispositivo de AT deve ser antes de tudo um objeto descartável. Uma órtese  clínica deixada de lado tão logo seja possível para o paciente. Nesse sentido,  assim como em uma análise bem sucedida, o acompanhante terapêutico deve sobrar  como um resto desnecessário ao sujeito, como algo que lhe foi útil durante  algum tempo, mas que não o é mais.  
                          A prática do AT no PAI-PJ                          
                          O acompanhante terapêutico no PAI-PJ é aquele que convida o  paciente com risco de cronificação a sair de sua casa ou da instituição para o  convívio social fora desses limites. O objetivo não é a adaptação social, mas  é, antes de tudo, a realização de um convite que se fundamenta na aposta  clínica de que o portador de sofrimento mental é capaz de sustentar sua  diferença de maneira razoável na cidade. Na circulação pela cidade, o próprio  paciente indica o itinerário.   
                          Para  finalizar é necessário expor um dos muitos casos acompanhados pelo PAIPJ que  tiveram uma boa evolução com a introdução do dispositivo AT no tratamento.    
                          Mara, 41 anos, em 1998, após numerosas crises,  atentou contra a vida da cunhada ao atingi-la várias vezes com uma faca  (SANTOS, 2004). Usuária de drogas e delirante, Mara estava completamente  entregue aos imperativos do imaginário. Os delírios da paciente incluíam vários  personagens, ela acreditava ser Scarlet Ohara e tinha Vera Fischer como sua  principal perseguidora. Além disso, tinha um irmão que respirava dentro dela.   
                          Em sua passagem ao ato, Mara identificou na cunhada a figura  perseguidora, Vera Fischer e, depois de pedir-lhe perdão de joelhos,  esfaqueou-a. Após o trágico episódio, Mara teve seu encontro com a lei e foi  internada em um hospital psiquiátrico por ordem judicial, onde foi  diagnosticada com esquizofrenia paranóide. Isso ocorreu no ano de 1998.   
                          Em fevereiro de 2002 iniciou-se o acompanhamento terapêutico  da paciente (SANTOS, 2004). O início do processo foi tenso, tendo em vista que  Mara estava entregue a pulsão de morte, distante e apática, ela se recusava a  sair de seu leito hospitalar. Além disso, estava bastante desorganizada, seu  auto-cuidado era precário e as tentativas de autoextermínio frequentes.  
                          Pouco a pouco, após muita insistência, a paciente pode  realizar saídas tímidas em torno do hospital, mas sempre de modo a tê-lo ao  alcance das vistas. Nesse período, Mara alucinava muito, não admitia nenhum  contanto físico e demonstrava-se muito invadida.  
                          Lentamente a paciente foi ganhando as ruas e suas saídas  começaram a produzir um efeito apaziguador. Demonstrava-se mais vaidosa e  preocupada com a aparência. O espaço de acompanhamento terapêutico começava a  funcionar como ponto de basta ao apassivamento ao gozo do Outro. Além disso,  ele representava um lugar onde sua singularidade era preservada, um contraponto  à lógica hospitalar (SANTOS, 2004).   
                          O sucesso do acompanhamento terapêutico, somado ao trabalho  do resto da equipe do programa, permitiu que, depois de nove anos de  internação, essa paciente conquistasse o direito a um novo local de moradia e a  um novo modo de tratamento. Mara foi transferida para uma residência terapêutica  e sua medida de segurança foi modulada para tratamento ambulatorial.   
                          Nos últimos tempos de contato com Mara, foi possível  perceber que ela se encontrava muito bem inserida na Residência Terapêutica em  que morava. Os acompanhamentos terapêuticos aconteciam de modo menos freqüente  devido à autonomia e segurança conquista pela paciente. Embora, devido à  cronicidade de sua doença, houvesse dificuldade de Mara na relação com os  cuidadores e colegas de residência. Desse modo, o acompanhamento terapêutico continuou  sendo um espaço suavizador que funcionava barrando e esvaziando esse Outro  gozador que a invadia.    
                          Frequentemente, o acompanhamento terapêutico era aproveitado  para ir ao salão, fazer compras, ir ao supermercado e comer o que gostava, isto  é, como espaço onde a paciente fazia valer suas vontades. Mesmo com alguma  dificuldade, Mara era capaz de criar bons laços, ao seu modo, mantendo-se em  seu costumeiro silêncio.   
                          Nos acompanhamentos terapêuticos era ativa e fazia desse um  espaço onde podia exercer seus desejos e sua subjetividade. Se a casa às vezes  reeditava a lógica hospitalar onde ela se colocava como objeto do desejo do  Outro, no acompanhamento terapêutico ela podia barrar essa invasão, por vezes  até mesmo pela via da recusa do próprio acompanhamento.   
                          Mara fazia grandes progressos, pois o Outro que a invadia  que era antes atacado de modo agressivo na figura daqueles que a circundavam,  foi pouco a pouco relativizado nas queixas delirantes nas quais alguma dimensão  de simbolização estava presente como tratamento da posição de gozo. Uma das  formas de manifestação desse processo era localizável nos episódios delirantes  em que a paciente pedia socorro à polícia por estar sendo agredida por seus  cuidadores e colegas de residência. Uma solução simbólica bastante razoável que  vem em substituição a passagem ao ato, uma defesa por via da lei e não por via  da violência.                           
                          Considerações Finais                          
                          O caso de Mara evidencia como aponta Barros (2004) que é preciso  perceber que a verdade confessada no encontro com a lei é a verdade do gozo,  capaz de libertar o sujeito. Ao responsabilizar o psicótico abre espaço para o  tratamento do gozo.    
                           A sentença extrai do gozo solitário uma fração que é  endereçada ao público, desse modo, torna-se um meio de resgatar o sujeito  segregado para enlaçá-lo ao Outro. Retomando seus direitos civis, o psicótico  pode responder pela posição de sujeito se servindo dos múltiplos direitos  através da responsabilização. Isso lhe dá acesso aos pedaçinhos de gozo  resultantes da articulação de seu desejo. É, nesse sentido, que nas psicoses o  ato assume não só a qualidade de um crime, mas, antes de tudo, de uma solução,  um pedido de socorro endereçado à lei.   
                          O analista e o acompanhante terapêutico, nessa realidade,  são secretários que trabalham na construção de um Outro razoável para o sujeito  psicótico, um Outro barrado e atento às suas demandas.    
                            
                          REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS                          
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                          BARROS, F. O. (2004) Vestes forenses. Publicação  do XIV Encontro Brasileiro do Campo Freudiano. No14.  Rio de Janeiro: Escola  Brasileira de Psicanálise, p. 79-84.                           
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