ISSN: 1983-6007 N° da Revista: 16 Janeiro à Abril de 2012
 
   
 
   
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O acompanhamento terapêutico com o psicótico infrator

The therapeutic accompaniment with psychotic offender

 
     
 

Michelle Karina Silva
Coordenadora do Serviço de Psicologia Clínica do Hospital Risoleta Tolentino Neves 
Mestre em Teoria Psicanalítica pela UFMG 
Ex-estagiária do PAI-PJ/TJMG
E-mail: michelle.psicologiaufmg@yahoo.com.br

Alessandra Bustamante
Psicóloga Judicial do PAI-PJ/TJMG e Psicóloga e Bacharel em Direito pela UFMG
E-mail: alessandrabustamante@uol.com.br

 

Resumo: O PAI-PJ (Programa de Atenção Integral ao Paciente Judiciário) é um programa desenvolvido no Tribunal de Justiça de Minas Gerais responsável pelo atendimento de psicóticos que respondem a processos criminais em tramitação ou já sentenciados. Esse artigo visa apresentar uma das vertentes clínicas de trabalho desse programa, qual seja, a modalidade de clínica de acompanhamento terapêutico, realizada por determinação judicial para fins de inserção social até o tempo de cessação das relações do paciente com a justiça. Palavras-chave: Acompanhamento terapêutico, Clínica da psicose, Ato jurídico, Ato criminal.

 

 

Abstract: The PAI-PJ (Program for Comprehensive Patient Care judiciary) is a program developed at the Court of Minas Gerais responsible for the care of psychotic responding to criminal proceedings in progress or already sentenced. This article presents one of the clinical aspects of this work program, namely, the mode of clinical therapeutic accompaniment, conducted by judicial determination for social insertion to the time of termination of the patient's relationship with justice.

Keywords: Therapeutic accompaniment clinic of psychosis, legal act, criminal act.

1 Parte desse trabalho foi apresentado no I Congresso de Psicologia Jurídica do Conselho Regional de Psicologia de Minas Gerais.

 
 

 

Uma breve descrição do Programa de Atenção Integral ao Paciente Judiciário

São inúmeros os relatos de noticiários de pessoas que, sem motivo aparente, exterminam de forma brutal e incompreensível familiares, ou até mesmo terceiros com quem não tinham contato algum. Muitos desses aparentemente não possuem explicação plausível. O autor do crime, muitas vezes, no imaginário social, transforma-se em um sujeito perigoso e temido. Como consequência social do ato, muitos defendem a prisão perpétua, a internação ou até mesmo a pena de morte, temerosos de conviver com essas pessoas no meio social. 

Depois de cometido um ato por lei considerado crime, é iniciado um processo contra o acusado de ser o autor. A partir de algumas suspeitas, durante o curso do processo instaurado contra o acusado, é possível que seja determinado que ele se submeta ao chamado “exame de sanidade mental”. O juiz nomeia dois peritos, médicos psiquiatras, cuja tarefa é atestar sobre a sanidade ou insanidade mental do sujeito em questão referindo-se ao momento do ato. Se avaliado pelos peritos que, no momento do ato, o agente, por doença mental era “inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento” (art. 26 do Código Penal), ele será considerado inimputável. Consequentemente o juiz poderá proferir uma sentença de medida de segurança em lugar de uma pena. A medida de segurança compreende a internação ou o tratamento ambulatorial, conforme for o crime. 

Teoricamente, a principal finalidade da medida de segurança seria o tratamento. Se a medida de segurança for de internação, o paciente será encaminhado a um Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico por tempo indeterminado e só poderá sair se passar por uma perícia médica chamada de “cessação de periculosidade”.

A periculosidade refere-se a um homem que está determinado, não tem escolha, move-se por causas que o alienam em relação aos próprios atos e, portanto, não pode ser censurado, nem responsabilizado, deve ser tratado, ressocializado. Essa noção está relacionada ao “(...) perigo para os outros ou para a própria pessoa, e não ao conceito de periculosidade penal, limitado à probabilidade da prática de crimes.” (ZAFFARONI & PIERANGELI, 2002. p. 114-118, p.856). 

Barros (2004) alerta-nos sobre o processo de alienação que acompanha a utilização do conceito de periculosidade, pois, este é tomado como natural e mantido com a função de legitimar as práticas jurídicas. O Estado “racional” apoia-se nessa noção na tentativa de objetivar o que na verdade não tem controle e que reflete um vazio de saber que ameaça a ordem social. 

O modelo positivista da Criminologia, utilizado para explicar a criminalidade, inaugurou a parceria das Ciências “Psi” (Psiquiatria e Psicologia) com o Direito. Essa escola passou a considerar o comportamento do homem delinquente como determinado, buscando os fatores biológicos e psicológicos que levariam ao crime. Dentro dessa perspectiva, o delinquente será considerado, a partir de então, um indivíduo diferente, anormal. Os médicos e psicólogos herdariam dessa escola a tarefa de detectar os

“aspectos patológicos”, a “personalidade inadaptada ao meio” dos criminosos e a periculosidade dos considerados inimputáveis. 

O sujeito considerado perigoso é condenado à exclusão da qual não pode ao menos se defender, pois para o Direito, como inimputável ele não possui a cidadania plena. Durante anos, os chamados inimputáveis foram “depositados” em instituições, perdendo o contato com familiares e os laços sociais. Como sem tratamento adequado, nunca receberam o laudo de cessação de periculosidade e, portanto, não deixaram o hospital. Tratava-se de uma reclusão indeterminada que não cumpria a função de tratamento.

Em 1999, estagiários de psicologia realizaram uma pesquisa no Tribunal de Justiça de Minas Gerais orientados pela psicóloga judicial Fernanda Otoni de Barros. A pesquisa consistiria em um levantamento dos processos criminais no quais havia instalação do incidente de insanidade mental e medida de segurança. Como fruto da pesquisa seria proposto o Projeto de Atenção Interdisciplinar ao Paciente Judiciário. 

Em 2001 publicava-se no Tribunal uma portaria criando o Programa de Atenção Integral ao Paciente Judiciário, o PAI-PJ. O Programa, atualmente, acompanha pacientes que respondem a processo criminal na comarca de Belo Horizonte. Há, inclusive, ações do PAI-PJ e do Tribunal de Justiça para a implantação de novos PAI-PJ em comarcas do interior de Minas Gerais. 

O PAI-PJ tem como objetivos promover a mediação entre rede pública de saúde mental e o judiciário; vincular o paciente à rede pública de saúde mental; acompanhar o tratamento e viabilizar a inserção social do paciente. Para isso conta com uma equipe interdisciplinar composta por psicólogos, assistentes sociais e assistentes jurídicos. 

Os casos são encaminhados por meio de ofício do juiz criminal ou de execução criminal, determinando que sejam acompanhados, ou, então, familiares, estabelecimentos prisionais, instituições de tratamento em saúde mental e outras que solicitam uma avaliação para verificação da possibilidade do acompanhamento.

O processo de acompanhamento é iniciado a partir da realização de uma avaliação jurídica e psicológica do paciente, quando não há ainda o sentenciamento da medida de segurança ou não havendo incidente de insanidade mental instaurado, o que já torna o acompanhamento do programa indispensável e espontâneo. Constituindo-se um caso de acompanhamento, encaminha-se o paciente à rede pública de saúde mental, em caso de não haver esse processo em curso. Em conjunto com a rede, o projeto terapêutico do paciente é construído e constantemente revisto e reconstruído, de acordo com as indicações subjetivas do próprio sujeito. O acompanhamento do paciente ocorre durante o processo criminal até a finalização da execução penal. 

A equipe do PAI-PJ é considerada auxiliar do juiz uma vez que encaminha pareceres informando sobre o acompanhamento do paciente e, a partir deles, o juiz dá andamento ao processo, tomando decisões de acordo com a especificidade do caso. 

Além disso, a equipe atua em estreita parceria com os atores envolvidos no cuidado ao portador de sofrimento mental, tais como a rede pública de saúde, rede pública e privada de assistência social, Universidades, organizações do terceiro setor e outros, além das equipes das instituições prisionais. As discussões são permanentes e os casos acompanhados pelo PAI-PJ são conduzidos com os profissionais responsáveis inclusive a partir dos diversos fóruns promovidos por esses setores. O PAI-PJ nesse contexto é considerado como mais um ponto da rede. Trata-se da chamada clínica feita por muitos e a direção dada é extraída da construção do caso que coloca em destaque o saber do sujeito. A partir do vazio de saber da escuta implicada da equipe podem surgir novas soluções.

Privilegia-se a escuta cuidadosa de cada sujeito. O PAI-PJ pode ser considerado mediador entre a clínica e o jurídico. A direção do caso é construída a partir do saber do sujeito, é ele quem orienta o trabalho da psicologia que ocupa uma posição de báscula entre a sustentação do trabalho do Juiz e a representação do saber do sujeito na construção de novas saídas.

Como propõe Barros (2003), o ato jurídico é utilizado como operador clínico. Nesse sentido, entende-se que a passagem ao ato é uma presença maciça do gozo, um produto da ação fragmentadora da pulsão de morte em um trabalho de desgarramento do sujeito do Outro, mas, ao mesmo tempo e de forma dúbia, uma última solução para o sofrimento, um pedido de socorro. Partindo desse princípio, o Direito pode funcionar como um meio para tratar o gozo e conseqüentemente oferecer a possibilidade do resgate do laço social. É possível que o ato jurídico produza um contorno para o que surge fora da lei, conduzindo o sujeito para a formulação de um sentido no lugar do ato. 

Pela linguagem, pode-se tratar o gozo por uma via de simbolização. A medida jurídica situa-se num ponto que pode orientar. A responsabilização do sujeito na psicose não surge aliada à culpa, mas ao assentimento a responsabilidade e implicação com o ato, o que é capaz de produzir novas formas de engate ao Outro. Segundo Barros, “A presença de um analista [...] não será sem conseqüências, pois o sujeito pode se servir desse dispositivo na montagem de um Outro razoável, franqueador dos modos de conexão com a ordem pública.” (BARROS, 2004, p.83) Assim, cria-se a possibilidade de que a alteridade permaneça aberta para convocar no sujeito novas soluções, dentro do que o ordenamento jurídico preceitue, em uma articulação responsável com a lei .

A incidência da lei sobre os casos de psicóticos que cometeram ato criminal coloca em jogo novos dispositivos para o manejo das clínicas das psicoses (BARROS, 2003). Frente a frente, ato criminal e ato jurídico se confundem na produção de um operador clínico único para o tratamento das psicoses. Essa interface cria condições para funcionamento do mecanismo de escuta do analista, como um mediador entre a clínica e a autoridade judicial. 

O PAI-PJ é alicerçado por uma clínica feita por muitos, que tem sua fundação enraizada no “Um” ato judicial. Pode-se dizer que nessa equipe há um corpo de palavra que circula, marca do discurso analítico que figura como orientação para atuação desses profissionais. Nesse sentido, “os muitos [...] são solidários na interrogação que cada um porta” (CIACCIA, 1999, p. 64). 

Amparado pela lógica e pelo saber de muitos, o PAI-PJ conta com uma equipe constituída por assessores jurídicos, assistentes sociais, psicólogos e estagiários de psicologia. A equipe jurídica é responsável pela interpretação do texto da lei na orientação do paciente sobre o processo. O serviço social oferece soluções na obtenção de recursos, fazendo encaminhamentos da família e do paciente para aquisição de benefícios e documentações. A equipe de psicologia realiza o acompanhamento psicológico, promovendo a inserção dos pacientes na rede pública de saúde. Além disso, os psicólogos e estagiários de psicologia do programa realizam o acompanhamento terapêutico, uma modalidade de clínica que permite ao paciente a circulação por diferentes espaços sociais. Sem dúvida, esse é um dispositivo central no trabalho do programa.

O histórico de construção da clínica de Acompanhamento Terapêutico (AT)

O acompanhamento terapêutico (AT) nasceu como modalidade clínica reconhecida em 1970, em Buenos Aires (SANTOS et al, 2002). Esse dispositivo clínico surgiu a partir da necessidade institucional de restituir ao indivíduo sua autonomia. Na época de sua aparição o acompanhante terapêutico era chamado de amigo qualificado. Era tarefa dele trabalhar inserido diretamente nas vivências conflituosas do paciente. 

Em função da inadequação da nomenclatura escolhida, logo houve uma substituição do termo amigo qualificado pelo termo atendente terapêutico e, posteriormente, pelo termo acompanhante terapêutico. Naturalmente, isso ocorreu devido ao vínculo de simetria especular que o termo inicial sugeria, isto é, uma relação de afeto reduzida as qualidades de uma amizade, sem os elementos técnicos que essa relação deve pressupor. 

O AT era indicado para pacientes em crise até o momento de estabilização do sujeito. Nessa época, o auxiliar psiquiátrico, como também era chamado o acompanhante terapêutico, chegava a passar 12 ou até 24 horas diárias com o paciente. Esse excesso de presença na experiência do outro, refletia ainda a reprodução da lógica asilar das instituições na casa do próprio paciente. Somente depois de algum tempo é que o acompanhamento terapêutico começou a se dissociar das instituições psiquiátricas para ser então utilizado como dispositivo auxiliar do processo terapêutico (MAIA & PIRIM, 1997). 

Em nosso país, essa prática surgiu atrelada às comunidades terapêuticas. Destacava-se entre elas a Clínica Pinheiros, em São Paulo (MAIA & PIRIM, 1997). Mas nessa época havia uma concepção teórica limitada do trabalho de acompanhamento terapêutico, relacionada apenas à definição teórica de que o acompanhante terapêutico era uma figura sujeita às identificações imaginárias e a posição invasiva do Outro.

Somente a partir de 1997, com o trabalho da “Clínica Urgentemente”, que buscava facilitar a circulação de seus pacientes, o dispositivo de AT foi retomado e desenvolvido teoricamente. Isso permitiu que o AT recuperasse seu lugar de importância no tratamento de pacientes portadores de sofrimento mental, principalmente, no processo de desospitalização e reinserção social dos pacientes.     

O acompanhante terapêutico pouco a pouco foi se diferenciando do profissional de enfermagem devido às especificidades de seu trabalho e de seu objetivo último de levar o sujeito a estabelecer laços sociais. Atualmente o acompanhamento terapêutico é preponderantemente exercido pelos profissionais psi. (MAIA & PIRIM, 1997)

A teoria da técnica

Em linhas gerais, o AT ocorre de modo paralelo à clínica convencional que faz uso do setting terapêutico. A inserção do paciente nesse tipo de prática confere ao profissional uma atuação potencialmente transformadora, capaz de incidir sobre toda uma rede de sentidos psicossociais sempre enraizadas as tramas do desejo. Nesse sentido, os caminhos percorridos no AT acontecem com o estabelecimento de um espaço de troca entre o paciente, o profissional, a família, o bairro e a cidade. (GUERRA & MILAGRES, 2005)  

Esse dispositivo coloca o sujeito diante do impasse do real para que ele construa versões particulares de ligação com o social. O paciente é convocado a fazer suas escolhas, saindo do lugar de objeto na relação com o Outro e escapando de jogos de poder ou de assujeitamento afetivo. O que se espera disso, é que seja construído um campo de emergência da singularidade, onde se articule o desejo. Para tanto, é fundamental que o sujeito seja responsabilizado por seus atos, por seus objetos de desejo, mesmo que nos momentos de maior desorganização e de atuação. O engajamento da subjetividade do paciente em um processo clínico como esse requer a existência de uma escuta que privilegie o sujeito do inconsciente.

O AT ocorre, normalmente, a partir de uma demanda terceirizada, isto é, de um pedido de um outro que não o paciente. Porém, essa demanda precisa ser de alguma forma articulada pelo sujeito. A reconstrução da demanda articulada com o desejo do paciente faz aparecer a dimensão da responsabilidade e um vínculo razoável com o acompanhante.              

Diante da crise, que endereça um pedido desesperado de socorro, o analista deve manter uma espera ativa, que assegura o lugar de testemunha daquilo que o sujeito constrói pela via delirante. O silêncio é a barra posta do lado do Outro que demanda que o sujeito se apresente, que faça uso da palavra. Nesse sentido, abre-se um campo que dá lugar ao discurso do sujeito.

Acompanhar terapeuticamente implica necessariamente que o acompanhante invista seu desejo no tratamento, fazendo aparecer uma implicação de reserva (FIGUEIREDO & COELHO, 2000). Isso envolve diferentes aspectos, tais como, lidar com situações de risco social, enfrentar acontecimentos inusitados, estar disponível para transitar em espaços desconhecidos, ir ao encontro do paciente na rua ou em sua casa. E ainda, manter um espaço estável e contínuo para que com a constância cronológica de acontecimento do processo seja construída uma referência temporal para o paciente. Essas atitudes bordejam o gozo que transborda no sujeito e ajudam a regular a ansiedade do sujeito.

Além desses aspectos, deve-se considerar que a equipe de acompanhantes se mantenha estável e que a palavra circule como um corpo simbólico na relação com os demais integrantes da equipe de profissionais que acompanha o caso. Isso ajuda a pulverizar a transferência, fazendo circular o saber e a escuta na equipe.

Podemos dizer que o AT requer que o profissional coloque em jogo sua vivacidade, para o sustento da relação transferencial e o surgimento dos espaços de palavra. Nesse sentido, o desejo do acompanhante é que sustenta o desejo do sujeito. As apostas, os investimentos, nas soluções apontadas pelo paciente, mesmo que sutis, abrem caminho para construção de um projeto terapêutico fundamentado pela subjetividade. Sem dúvida, pautar a direção do tratamento no desejo do próprio sujeito é o mesmo que fazer com que ele se responsabilize pelo seu tratamento o retirando do lugar de objeto alienado na relação com o Outro.

Partindo da ética da técnica psicanalítica, o AT pode trazer ganhos significativos à evolução dos pacientes, agindo na limitação da cronicidade, minimizando a marginalização e aumentando as possibilidades de rearticulação social. 

A clínica de rua realizada pelo acompanhante terapêutico comporta uma dimensão pedagógica. Trata-se, contudo, de uma pedagogia da subjetividade, comprometida com as soluções apontadas pelo paciente e voltada para o seu savoir faire. Essa é única vertente educativa que a psicanálise é capaz de desempenhar e segundo a qual o sujeito é impelido a revisitar seu próprio desejo.

Embora o acompanhante terapêutico não ocupe o lugar do analista, também cabe a ele exercer a escuta que assegura a construção de elementos que possam ajudar na solução de alguns impasses do tratamento. Em consonância com o trabalho de análise, o acompanhante terapêutico deve considerar a realidade psíquica do sujeito, sem confrontação com suas construções delirantes, isto é, colocando-se como secretário e testemunho. Isso porque,

Não temos razão alguma para não aceitar como tal o que ele nos diz [...] o discurso revela-nos seguramente uma dimensão constitutiva [...] é a distância entre o vivido psíquico, e a situação semi-externa em que, em relação a todo fenômeno de linguagem, se acha não somente o alienado, mas qualquer sujeito humano. (LACAN, 1955-56/2008, pp. 243-244).

Com esse trabalho, cria-se uma moldura simbólica a partir de uma esfera de atividade psíquica com a qual o psicótico possa se articular com a vida social. Isso só é possível quando o acompanhamento terapêutico incentiva que o sujeito tome a palavra construindo soluções simbólicas para aquilo que se apresentava no campo da passagem ao ato, ou seja, em um nível pulsional mortífero.  O contrato terapêutico, aquilo que se combina entre paciente e acompanhante, é um tipo de molde simbólico e presentificação mínima da lei a partir da articulação da palavra.

Podemos entender que a ordem simbólica reúne o conjunto de regras sociais, a cultura e as leis que se expressam por um código significante que antecede o sujeito. Como nos esclarece Lacan (2003) o dizer, a verdade por trás do sentido, se articula com o dito que o ex-siste, o que esclarece que o simbólico está posto antes do sujeito. O analista faz o dizer ocupar o lugar do real, ele traz à tona o verdadeiro discurso. O impossível do dizer, presente na fala do psicótico, é o que revela a estrutura, ou o real que vem a luz na linguagem. (LACAN, 2003). Na psicose, o funcionamento do campo simbólico é precário e os dizeres dos imaginários predominam sobre o sujeito. O acompanhante terapêutico entra nessa articulação em favor do resgate mínimo de simbolização, algo capaz de enlaçar o sujeito com o social, recolhendo os ditos do sujeito para consolidação de uma organização viável (MILLER, 2000).  

Esse dispositivo clínico cumpre ainda outras funções. O AT retira o analista da marginalização social, do lugar inútil de especialista da desidentificação, e, ao mesmo tempo, o coloca no lugar de analista cidadão, aquele que atende a uma comunidade de interesses localizada entre o discurso analítico e a cultura, saindo da reserva de seu consultório para assumir a posição de participação, sensível as mais diversas formas de segregação (LAURENT, 1999). O AT é uma prática inserida no cenário da reforma psiquiátrica brasileira. Somado ao discurso analítico esse dispositivo pode ser tomado como uma resposta do analista cidadão as formas de segregação presentes no campo de saúde mental.

Saindo dos consultórios e deixando de se aplicar somente às classes privilegiadas, a psicanálise encontra um novo lugar no contemporâneo, um lugar útil frente aos conflitos próprios à sociedade. Sem dúvida, isso implica que se lance mão de uma nova lógica que considere o sintoma de cada sujeito em sua singularidade. Desse modo, a melhor forma de se colocar no tratamento é se oferecendo como objetopsicanalista, como vazio ativo que carrega um nada querer a priori e sem preconceito, para que disso o sujeito possa fazer um bom uso. Ao se apresentar desse modo a psicanálise se coloca fora do registro das contra-indicações, respondendo de maneira adequada ao real contemporâneo. (MILLER, 2000)

É preciso enfatizar que o dispositivo de AT deve ser antes de tudo um objeto descartável. Uma órtese clínica deixada de lado tão logo seja possível para o paciente. Nesse sentido, assim como em uma análise bem sucedida, o acompanhante terapêutico deve sobrar como um resto desnecessário ao sujeito, como algo que lhe foi útil durante algum tempo, mas que não o é mais. 

A prática do AT no PAI-PJ

O acompanhante terapêutico no PAI-PJ é aquele que convida o paciente com risco de cronificação a sair de sua casa ou da instituição para o convívio social fora desses limites. O objetivo não é a adaptação social, mas é, antes de tudo, a realização de um convite que se fundamenta na aposta clínica de que o portador de sofrimento mental é capaz de sustentar sua diferença de maneira razoável na cidade. Na circulação pela cidade, o próprio paciente indica o itinerário. 

Para finalizar é necessário expor um dos muitos casos acompanhados pelo PAIPJ que tiveram uma boa evolução com a introdução do dispositivo AT no tratamento.  

Mara, 41 anos, em 1998, após numerosas crises, atentou contra a vida da cunhada ao atingi-la várias vezes com uma faca (SANTOS, 2004). Usuária de drogas e delirante, Mara estava completamente entregue aos imperativos do imaginário. Os delírios da paciente incluíam vários personagens, ela acreditava ser Scarlet Ohara e tinha Vera Fischer como sua principal perseguidora. Além disso, tinha um irmão que respirava dentro dela. 

Em sua passagem ao ato, Mara identificou na cunhada a figura perseguidora, Vera Fischer e, depois de pedir-lhe perdão de joelhos, esfaqueou-a. Após o trágico episódio, Mara teve seu encontro com a lei e foi internada em um hospital psiquiátrico por ordem judicial, onde foi diagnosticada com esquizofrenia paranóide. Isso ocorreu no ano de 1998. 

Em fevereiro de 2002 iniciou-se o acompanhamento terapêutico da paciente (SANTOS, 2004). O início do processo foi tenso, tendo em vista que Mara estava entregue a pulsão de morte, distante e apática, ela se recusava a sair de seu leito hospitalar. Além disso, estava bastante desorganizada, seu auto-cuidado era precário e as tentativas de autoextermínio frequentes.

Pouco a pouco, após muita insistência, a paciente pode realizar saídas tímidas em torno do hospital, mas sempre de modo a tê-lo ao alcance das vistas. Nesse período, Mara alucinava muito, não admitia nenhum contanto físico e demonstrava-se muito invadida.

Lentamente a paciente foi ganhando as ruas e suas saídas começaram a produzir um efeito apaziguador. Demonstrava-se mais vaidosa e preocupada com a aparência. O espaço de acompanhamento terapêutico começava a funcionar como ponto de basta ao apassivamento ao gozo do Outro. Além disso, ele representava um lugar onde sua singularidade era preservada, um contraponto à lógica hospitalar (SANTOS, 2004). 

O sucesso do acompanhamento terapêutico, somado ao trabalho do resto da equipe do programa, permitiu que, depois de nove anos de internação, essa paciente conquistasse o direito a um novo local de moradia e a um novo modo de tratamento. Mara foi transferida para uma residência terapêutica e sua medida de segurança foi modulada para tratamento ambulatorial. 

Nos últimos tempos de contato com Mara, foi possível perceber que ela se encontrava muito bem inserida na Residência Terapêutica em que morava. Os acompanhamentos terapêuticos aconteciam de modo menos freqüente devido à autonomia e segurança conquista pela paciente. Embora, devido à cronicidade de sua doença, houvesse dificuldade de Mara na relação com os cuidadores e colegas de residência. Desse modo, o acompanhamento terapêutico continuou sendo um espaço suavizador que funcionava barrando e esvaziando esse Outro gozador que a invadia.  

Frequentemente, o acompanhamento terapêutico era aproveitado para ir ao salão, fazer compras, ir ao supermercado e comer o que gostava, isto é, como espaço onde a paciente fazia valer suas vontades. Mesmo com alguma dificuldade, Mara era capaz de criar bons laços, ao seu modo, mantendo-se em seu costumeiro silêncio. 

Nos acompanhamentos terapêuticos era ativa e fazia desse um espaço onde podia exercer seus desejos e sua subjetividade. Se a casa às vezes reeditava a lógica hospitalar onde ela se colocava como objeto do desejo do Outro, no acompanhamento terapêutico ela podia barrar essa invasão, por vezes até mesmo pela via da recusa do próprio acompanhamento. 

Mara fazia grandes progressos, pois o Outro que a invadia que era antes atacado de modo agressivo na figura daqueles que a circundavam, foi pouco a pouco relativizado nas queixas delirantes nas quais alguma dimensão de simbolização estava presente como tratamento da posição de gozo. Uma das formas de manifestação desse processo era localizável nos episódios delirantes em que a paciente pedia socorro à polícia por estar sendo agredida por seus cuidadores e colegas de residência. Uma solução simbólica bastante razoável que vem em substituição a passagem ao ato, uma defesa por via da lei e não por via da violência.

Considerações Finais

O caso de Mara evidencia como aponta Barros (2004) que é preciso perceber que a verdade confessada no encontro com a lei é a verdade do gozo, capaz de libertar o sujeito. Ao responsabilizar o psicótico abre espaço para o tratamento do gozo.  

 A sentença extrai do gozo solitário uma fração que é endereçada ao público, desse modo, torna-se um meio de resgatar o sujeito segregado para enlaçá-lo ao Outro. Retomando seus direitos civis, o psicótico pode responder pela posição de sujeito se servindo dos múltiplos direitos através da responsabilização. Isso lhe dá acesso aos pedaçinhos de gozo resultantes da articulação de seu desejo. É, nesse sentido, que nas psicoses o ato assume não só a qualidade de um crime, mas, antes de tudo, de uma solução, um pedido de socorro endereçado à lei. 

O analista e o acompanhante terapêutico, nessa realidade, são secretários que trabalham na construção de um Outro razoável para o sujeito psicótico, um Outro barrado e atento às suas demandas.  

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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GUERRA, A. M. C. & MILAGRES, A. F. (2005) Quantos paus se faz um acompanhamento terapêutico?. Contribuições da psicanálise a essa clínica em construção. Dossiê: Estilos clínica, [s.l], vol.10, no.19, p.60-83.

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MAIA, M. S. & PIRIM, M. (1997) Em busca de uma Singularidade: Uma Proposta Clínica no Processo de Reinsserção Psicossocial. In: Delgado, Pedro Gabriel et al (org). O Campo da Atenção Psicossocial. Rio de Janeiro: IFB, Te Cora Editora. p.05-21.

MILLER, J-A. (2000) As contra-indicações ao tratamento psicanalítico. In: Orientação lacaniana III.Mimeo, Belo Horizonte [s.n.], p.52-55.

SANTOS, M. C. (2004) Acompanhamento terapêutico: uma prática comprometida com a inserção social. Betim. Monografia de conclusão de curso de especialização em Psicologia da Saúde. p.11-15.

ZAFFARONI, E. R. & PIERANGELI, J. H. (2002) Manual de direito penal brasileiro: parte geral. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 4 ed. p. 114-118., p.856.

 
  Recebido em maio de 2013
Aceito em fevereiro de 2014
 
 
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