ISSN: 1983-6007 N° da Revista: 25/26 Janeiro a Junho de 2015
 
   
 
   
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INTERNATO DE SAÚDE MENTAL NO CURSO DE MEDICINA: O XADREZ DA FORMAÇÃO

 

 
     
 

 



Palavras-chave: Internato de Saúde Mental, Formação Médica, Metodologia da Problematização, Caso Clínico, Reforma Psiquiátrica. Abstract: The purpose of this article is to present thoughts upon the mental health internship in Medicine class, from experience of a PUCMINAS’ student, working as intern at one of the substitutive services of the attention on alcohol and other drugs users in Belo Horizonte. The university methodology of learning will be presented, based on Methodology of Problematization. In tune with this methodology, is presented the Clinical Case Construction, method applied to mental health, which the patient’s history builds a case from listening, which admits the existence of a subject that shows the symptoms. The knowledge coming from this experience, offered by closer ties between the university and the practical field, have given rise to the impasses and challenges present in the reality of the substitutive services guided by the precepts of the Psychiatric Reform.
Keywords: Mental Health Internship, Medical Education, Methodology of Problematization, Clinical Case, Psychiatric Reform. 1. Introdução O complexo campo da formação em Medicina O campo da educação médica tem sido alvo de atenção constante em várias instâncias contemporâneas de estudo e de regulamentação. Esses esforços são uma tentativa de alinhar as necessidades do tempo presente com a realidade curricular na formação do futuro médico. Nesse sentido, o Ministério da Educação, por meio da resolução nº 3 de 20 de junho de 2014, instituiu as novas Diretrizes Curriculares Nacionais (DCNs) para os cursos de Medicina, estabelecendo que a formação médica deverá ser:
[...] geral, humanista, crítica, reflexiva e ética, com capacidade para atuar nos diferentes níveis de atenção à saúde, com ações de promoção, prevenção, recuperação e reabilitação da saúde, nos âmbitos individual e coletivo, com responsabilidade social e compromisso com a defesa da cidadania, da dignidade humana, da saúde integral do ser humano e tendo como transversalidade em sua prática, sempre, a determinação social do processo de saúde e doença (MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO, 2014).
Além disso, a resolução instituiu a obrigatoriedade de conteúdos e de ações de formação em Saúde Mental dentro da carga horária prevista aos internatos, em atividades que deverão acontecer eminentemente em cenários de ensino-aprendizagem com abordagem prática (MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO, 2014).
Alinhada às novas diretrizes curriculares, a Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC MINAS) implementou no currículo do curso de Medicina, campus Betim, o internato obrigatório de Saúde Mental no 9º período da graduação. O internato possui uma carga horária de 373 horas, em que o aluno passa por três campos de estágio, cada um com duração de três semanas, sendo nove semanas a duração total. Tais campos são serviços da rede substitutiva, como CERSAM (Centro de Referência à Saúde Mental), CAPS (Centro de Atenção Psicossocial), CAPS AD (Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas), CMT (Centro Mineiro de Toxicomania1), além do Instituto Raul Soares2. Em cada campo de estágio, o aluno fica responsável, dentre outras atividades, pela atenção e pelo cuidado de um
1 Centro Mineiro de Toxicomania é um CAPS-AD da Fundação Hospitalar do estado de Minas Gerais (FHEMIG), localizado na cidade de Belo Horizonte-MG. 2 Instituto Raul Soares é um hospital psiquiátrico (e hospital de ensino) da Fundação Hospitalar do estado de Minas Gerais (FHEMIG), localizado na cidade de Belo Horizonte-MG. usuário do serviço e, ao final de cada período, tem a incumbência de construir o caso clínico desse usuário em conjunto com os professores e a equipe. A metodologia de ensino da PUC MINAS é baseada na chamada Metodologia da Problematização. Segundo Vieira e Panúncio-Pinto (2015), tal sistema foi inicialmente idealizado por Bordenave e Pereira, estando ancorado na metodologia problematizadora de Freire. Esta, segundo Pereira e colaboradores (2012), é baseada nos seguintes preceitos: percepção da realidade, protagonismo e trabalho em grupo. A visão educacional de Freire instrui para que o ato de ensinar crie possibilidades para a construção de conhecimentos e que não se resuma à mera transferência destes, evitando-se, assim, uma relação marcadamente verticalizada (VIEIRA; PANÚNCIO-PINTO, 2015), (PEREIRA et al., 2012).
A Metodologia da Problematização é encadeada por etapas, assumindo o formato de um arco, esquema baseado no chamado “Método do arco”, de Charles Maguerez. As etapas a serem cumpridas são: observação da realidade concreta, determinação de pontos-chave, teorização, hipotetização de solução e aplicação à realidade. Elas determinam uma cadeia dialética ação-reflexão-ação, em que o estudante toma a frente na construção do conhecimento. Desse modo, ele sai da posição de observador para assumir a condição de sujeito ativo, tendo o professor papel de orientador, não mais sendo a figura que representa a fonte central de informação ou de decisão das ações (VIEIRA; PANÚNCIO-PINTO, 2015):
Figura 1 – Arco de Maguerez Na primeira etapa, o estudante, com base em um tema/conteúdo predeterminado, registra suas percepções da realidade observada, elaborando problemas a serem estudados e investigados, podendo ser formados pequenos grupos sob a orientação de um professor, que possui o papel de instigar a discussão e auxiliar a estruturação do problema (VIEIRA; PANÚNCIO-PINTO, 2015). A segunda etapa convida o estudante à reflexão das variáveis que transpassam o problema, assim como os determinantes envoltos no contexto que não se mostram evidenciados. O professor orienta para uma reformulação com base na seleção dos pontos-chave, que serão estudados com maior profundidade na etapa subsequente (VIEIRA; PANÚNCIO-PINTO, 2015).
Esta etapa consiste na teorização, em que se buscam, em variadas fontes, informações acerca do problema. Os conhecimentos são sistematizados e discutidos quanto a sua validade e pertinência para a resolução do problema, a fim de confirmar ou refutar as hipóteses. Faz-se necessário o registro das conclusões advindas dessa etapa, pois essas subsidiarão a etapa seguinte, em que elementos são buscados para a construção de soluções (VIEIRA; PANÚNCIO-PINTO, 2015).
As hipóteses de solução são consequências da compreensão da realidade na qual o estudante imergiu. Por fim, na última etapa, o estudante retorna ao campo prático a fim de executar intervenções que representam o seu compromisso com a responsabilidade social, sendo capaz de tomar para si o papel de agente transformador daquela realidade (VIEIRA; PANÚNCIO-PINTO, 2015). Em sintonia com a metodologia da problematização, o Internato de Saúde Mental da PUC Minas visa possibilitar a transmissão do saber clínico de forma mais abrangente, ultrapassando a redução do sofrimento mental à esfera puramente biológica ao considerar a dimensão psíquica como constituinte do ser humano. Dessa forma, a concepção atual de saúde mental sustentada pela reforma psiquiátrica brasileira em curso no país diz respeito a um campo de saber ampliado e heterogêneo. Há uma “mudança no que concernia a um conhecimento e assistência mais restritos à psiquiatria para uma ampliação que inclui uma rede complexa de variados saberes, não se reduzindo ao estudo e tratamento das doenças mentais” (GENEROSO, 2014). Portanto, há uma descentralização do saber psiquiátrico, que passa a compor esse campo de conhecimento juntamente com outros saberes técnico-científicos. Essa mudança gerou uma inovação no trabalho em equipe, que passou a ser interdisciplinar, e a responsabilidade pela condução do tratamento não mais exclusiva do psiquiatra, mas também de outros profissionais.
A prática deslocou-se também para além do hospital psiquiátrico e passou a incluir a comunidade onde vive a pessoa em sofrimento e, por isso, afeita às contradições da vida cotidiana e das experiências de cada sujeito. Nessa perspectiva, a problematização das experiências e a busca de soluções se tornam mais complexas, assim como a transmissão e a consolidação de conhecimento. Uma das estratégias tanto de transmissão de saber quanto de operador clínico das intervenções em equipe, visando alcançar a complexidade da experiência dos sujeitos em sofrimento psíquico e a clínica aí compreendida, foi a concepção de construção do caso clínico, conforme veremos mais adiante.
O presente artigo pretende colocar em pauta a experiência da construção do caso clínico por uma acadêmica do 9º período do curso de Medicina da PUCMINAS no Internato de Saúde Mental, estagiando em um dos serviços substitutivos da rede de atenção aos usuários de álcool e outras drogas de Belo Horizonte.
A construção do caso clinico é um método aplicado à saúde mental, em que a história do paciente se faz caso. Segundo Figueiredo (2004, p. 79), isso se dá “com base nos elementos que recolhemos de seu discurso, que também nos permitem inferir sua posição subjetiva”. Viganò (2010) elucida que a construção do caso se dá a partir da contribuição dos vários sujeitos envolvidos (psicólogos, psiquiatras, enfermeiros, estagiários, familiares), de modo que suas narrativas são reunidas a fim de possibilitar o encontro de um ponto em comum que reflita o lugar do sujeito e do sofrimento que o acometeu.
Sendo assim, as posições são invertidas, ou seja, o paciente passa a assumir a posição de docente e a equipe/profissionais colocam-se na posição de alunos (FIGUEIREDO, 2004), (VIGANÒ, 2010). A posição de aluno permite ao profissional se orientar pelo saber trazido pelo paciente, recolhendo seus movimentos, seus significantes primordiais e as passagens subjetivas que contam, conforme nos indica Viganò (1999).
A metodologia da problematização e o método da construção do caso clínico possuem como ponto de interseção a noção de que, por meio do desenvolvimento de um pensamento reflexivo, admite-se a existência de um sujeito multidimensionado, no qual várias forças atuam para além da dimensão biológica. O sujeito encontra-se envolto em um contexto próprio, em que diversos determinantes irão implicar o seu processo de adoecimento. O acadêmico é instigado a desenvolver o seu potencial clínico, social e político diante da realidade que lhe é apresentada no cenário prático. As vivências advindas dessa experiência, propiciadas pelo estreitamento dos laços entre a universidade e o campo prático, fizeram emergir os impasses e os desafios presentes na realidade dos serviços substitutivos, norteados pelos preceitos da Reforma Psiquiátrica. Além disso, destacou-se o importante papel do acadêmico que, de acordo com Mendes (2014, p. 23) “estando em posição exterior e menos confrontadora à equipe”, pode contribuir com novos elementos que poderão efetivamente auxiliar na condução do tratamento do paciente (MENDES, 2014). 2. Aplicação das metodologias em um caso clínico O caso clínico acompanhado trata de um paciente do sexo masculino, com 33 anos. A relação com o paciente foi balizada pelo jogo de xadrez, sendo uma particularidade capturada pela escuta da acadêmica no momento em que o mesmo expressou o desejo por aprender a jogar. O momento do xadrez constituiu-se então como facilitador para as entrevistas, uma vez que o paciente era visto pelo serviço como de difícil manejo, pois era indisciplinado e não respeitava as regras. No entanto, durante as semanas do estágio, ele mostrou-se sempre estável e respeitoso com a estudante.
Durante as partidas de xadrez, o paciente falava sobre sua vida familiar: contou sobre a mãe que o negligenciava, que o deixava sem comer e sozinho em casa, não se importando com as suas necessidades, e que não lhe dava afeto. Ele percebia que a mãe o tratava de modo pior em comparação com os demais irmãos e, diferentemente desses, seu nome foi registrado apenas na adolescência.
Conheceu o seu pai apenas aos nove anos, em uma cena que foi profundamente marcante para ele. Estava na janela de sua casa e viu um carro se aproximar, conduzido por um homem, que se dirigiu à porta da casa. Observou sua mãe conversando com ele, quando ela lhe disse: “seu filho está aqui”, e o homem respondeu: “esse menino é preto demais para ser meu filho”. Nesse mesmo dia, o paciente descobriria pela mãe que aquele homem era seu pai que tanto ansiava por conhecer. Após esse episódio nunca mais teve contato com ele. Começou a beber aos doze anos por influência do padrasto, que chegava em casa com muitas garrafas de bebida e levava-o ao bar. Essa época coincide com o início dos abusos sexuais sofridos pelo paciente, praticados por um inquilino que morava no mesmo lote de sua família. Essa pessoa não despertava suspeitas e era bem vista pelos seus pais e irmãos. O paciente relata que essa pessoa se fazia de boazinha na frente de sua família. Aos quatorze anos, chegou em casa muito bêbado e confrontou a mãe quanto a sua indiferença diante dos abusos sexuais sofridos anos antes. Por volta dos 15 anos, já usava maconha, tíner e loló3.
Não frequentava a escola, relatou que “tinha que cuidar da casa” e, muitas vezes, ia para a rua e praticava alguns furtos para poder arranjar algum dinheiro para pagar as contas em casa, que eram muitas. Sentia-se sozinho no mundo, desamparado. Só aprendeu a ler aos dezessete anos, quando, por iniciativa própria, decidiu ingressar em um programa de alfabetização direcionado a jovens e adultos que não concluíram os estudos em idade própria.
3 Nome popular de entorpecente a base de clorofórmio e éter. É inalado pelo nariz ou boca diretamente ou, quase sempre, por meio de um tecido embebido com a substância. Conseguiu completar o ensino médio pela EJA4 e desde então passou por vários empregos, tendo feito, inclusive, um concurso público para uma vaga de auxiliar de limpeza. Relata que não conseguiu se estabilizar por muito tempo em nenhum desses empregos por conta do vício no crack e no álcool.
Aos vinte anos, conheceu a cocaína que, segundo ele, “é a melhor droga que existe”. Não fez uso dela por muito tempo, pois essa droga esvaiu seus recursos financeiros, sendo, então, substituída pelo crack, uma droga mais acessível à sua condição. Esse momento coincide com a intensificação do uso de drogas e álcool, mas ele não sabe explicar o motivo. Geralmente não consegue ficar mais de dois dias sem fazer uso dessas drogas e passa dias sem dormir. Quando está sob efeito, principalmente do álcool, envolve-se em brigas na rua e muitas vezes apresenta pensamentos e alucinações auditivas de cunho persecutórios. Já chegou a ficar desacordado na rua devido a agressões sofridas por pessoas por quem ele acreditava estar sendo observado de modo estranho e, por isso, ia tirar satisfações.
O paciente narrou que, por diversas vezes, pensou em tirar a própria vida, pois não conseguia achar um lugar para ele no mundo. Em muitos momentos de seu discurso aparece de modo expressivo o peso que a cor da pele tem para ele. Diz que não consegue melhorar de vida e ter empregos melhores em razão de sua cor. Segundo o paciente, as pessoas não gostam dele porque ele é negro, fator que o impede de manter relações sociais. E, em dado momento da entrevista, ele realiza a seguinte pergunta: “você acha que sou muito preto?”.
A fala paterna “você é preto demais para ser meu filho” imprimiu uma marca significante psicoafetiva em sua vida, de tal modo que determinou seu movimento no mundo e nas relações em geral. Ele a tomou como estigmatizante, definindo de certa forma seu lugar no mundo por meio da cor de sua pele – preto demais. Ao mesmo tempo, reedita o lugar materno de rejeição, de ser o pior, objeto de abuso. Podemos dizer que é esse o ponto que marca a sua singularidade no mundo, comandando suas relações com as pessoas.
Na metodologia da construção do caso clínico, como visto acima, é o saber do sujeito que nos orienta na clínica por meio de nossa escuta. Nesse caso, a discente pôde escutar os movimentos desse sujeito, as particularidades escandidas de sua história, a sua posição subjetiva, conforme afirma Viganò (2010). Elementos que permitem a leitura de um diagnóstico de discurso, o qual se refere à relação do sujeito com o Outro5, no sentido de uma
4 Educação de Jovens e Adultos. Programa do Ministério da Educação que tem em suas bases, o objetivo de se firmar um pacto social para melhorar e fortalecer a educação de jovens e adultos no Brasil.
5 Outro: Lacan irá diferenciar o outro, escrito com primeira letra minúscula, do Outro, com maiúscula. O outro refere-se ao outro semelhante (semelhante ao eu), também podendo ser chamado de outro imaginário. O Outro, posição discursiva que está em jogo e que se delineia “na dinâmica da parceria que o sujeito estabelece com o Outro, representado pela família, pela comunidade ou pela equipe de tratamento” (TEIXEIRA, 2010, p. 34). Perceber esse movimento do sujeito é fundamental para a condução do tratamento, pois é a partir dessa singularidade que podem surgir novas intervenções. Por exemplo, o lugar onde o paciente em questão se situa, que é de discriminação e rejeição por ser preto, pode convocar os representantes do Outro para esse sujeito, incluindo a equipe de tratamento, a responder desse ponto de rejeição. E a forma que ele responde a isso é com hostilidade e indisciplina, dificultando o manejo clínico.
Para além do estigma social sobre o racismo reforçado pelo contexto social discriminatório e excludente à população negra na qual nossa sociedade encontra-se imersa, é importante destacar a particularidade desse sujeito com o significante que marcou sua posição na vida – ser preto demais e, por isso, ser rejeitado e abusado. Por exemplo, em uma ocasião em que a aluna jogava com ele uma partida de xadrez, ele jocosamente dizia que fazia determinados movimentos errados porque estava jogando com as peças pretas e não queria jogar com tais peças. Mas a acadêmica, ancorada na escuta sobre a posição subjetiva desse paciente, pôde fazer uma intervenção dizendo que é importante aprender a jogar com as peças pretas. Ou seja, ele poderia responder de outra maneira diante do ser preto, sem necessariamente se colocar como discriminado, rejeitado e largado no mundo – o que o levava a agir de forma agressiva como se quisesse forçar uma aceitação pelo Outro. Esse ponto se constitui em um importante eixo de orientação das intervenções em uma equipe que poderia responder de forma simplificada a partir de uma leitura moral e disciplinar baseada apenas no comportamento do paciente.
Nesse sentido, podemos observar que em seu prontuário repetem-se muitos registros da equipe que o definem como um paciente difícil de manejar, agressivo, sem educação, incapaz de seguir regras e compromissos. Para que efetivamente ocorra o tratamento, faz-se necessário que se acolha tais atitudes, essa falta de compromisso, visto que podem ser reflexo direto da condição de resto discriminado, abusado e rejeitado que o situa na vida. Podemos dizer que essa é a única condição que ele reconhece e que precisa ser tratada em sua relação com o Outro.
Em um dos primeiros momentos de contato com o paciente, durante uma partida de xadrez, um profissional do serviço interrompeu o jogo de modo brusco, alegando que já estava na hora de o paciente pegar a sua medicação e ir embora. Em particular, o profissional
com maiúscula, Lacan chamou de simbólico e o define como tendo estrutura de linguagem e é também conhecido como o “tesouro dos significantes”, lugar do código que usamos para falar. referiu que “o paciente é muito complicado, indisciplinado, e que arranja confusão no serviço. Ele deveria entender que existem regras na instituição”. Observamos, com isso, que muitas vezes as intervenções se pautam pelo comportamento e não pela posição subjetiva desse paciente, que poderia nos indicar as saídas possíveis para o caso.
O álcool e as demais drogas têm papel apaziguador das angústias na vida do paciente, haja vista sua dificuldade de elaborar os eventos traumáticos que lhe ocorreram. A rejeição do pai, o estigma racial, a negligência da mãe na infância e na adolescência, e os abusos sexuais frequentemente aparecem como memórias carregadas afetivamente, às quais ele não consegue responder sem recorrer às drogas. Nessa perspectiva, a construção do caso clínico poderá ser um importante operador clínico para a condução do tratamento.
3. Aprendendo a jogar com as peças pretas Desde os períodos iniciais do curso, nas disciplinas referentes à saúde mental, os acadêmicos de Medicina da PUC Minas têm contato com os preceitos norteadores da Reforma Psiquiátrica. Essa, ainda em processo, visa conduzir a um novo modelo de assistência marcado pela desinstitucionalização. Parametrizados pelos conceitos de cidadania e território, a reforma psiquiátrica insiste em um modelo de assistência baseado no cuidado, no acolhimento, na escuta e na produção de sentidos, por meio dos chamados serviços substitutivos. Para além de uma reforma restrita apenas aos serviços, a reforma psiquiátrica possui uma dimensão ideológica que objetiva a construção de um outro lugar social para a loucura. Ou seja, a transformação das relações da sociedade com a loucura (TENÓRIO, 2002; SHIMOGUIRI, PÉRICO, 2014).
Sob a luz dessa bagagem teórica, alguns questionamentos afloraram-se. Reconhecendo que os princípios reformistas emergem contrapondo o antigo modelo manicomial de assistência (realizado em instituições fechadas, baseado na custódia, tutela, vigilância e disciplina, que promove o isolamento e a segregação das pessoas) nos perguntamos: a prática da equipe não poderia, ainda, estar impregnada por alguns preceitos dessa velha lógica de assistência? Silveira e Vianna (2010) esclarecem que:
A postura manicomial não se restringe aos espaços físicos do hospital, mas, sobretudo, à maneira como lidamos e entendemos a doença mental [...]. Podemos ser em espaços abertos muito mais manicomiais do que alguns profissionais que se encontram em hospitais psiquiátricos. O muro que realmente impede a reforma se encontra sedimentado em alguns profissionais que desconsideram o direito à cidadania e à liberdade (SILVEIRA; VIANNA, 2010).
Ao buscar elementos para a construção do caso clínico do paciente, notou-se uma divergência entre o plano das ideias e discursos e o plano das atitudes realizadas no cotidiano da equipe multidisciplinar. Em convergência com o que foi demonstrado por Simões e Fernandes (2013), a observação revelou que a equipe estaria direcionada a uma compreensão do processo de adoecimento ancorada nos pressupostos técnicos do saber psiquiátrico tradicional, sendo esse focado na dimensão biológica do ser humano. Sendo assim, a atuação da equipe multiprofissional apenas complementaria a prescrição farmacológica inerente ao ato médico (psiquiátrico), reforçando os velhos desígnios ideológicos que concebem a cura dos sintomas psicopatológicos essencialmente como resultado de intervenção medicamentosa (SIMÕES; FERNANDES, 2013).
Além disso, observa-se na fala de um dos trabalhadores da instituição a reprodução do discurso moral e a necessidade de correção, ao interromper o jogo de xadrez entre o paciente e o acadêmico. Esse discurso encontra suas bases, segundo as observações de Foucault (2005, p. 74), nas antigas formas de segregação que estão no processo de nascimento da psiquiatria como especialidade médica. Foucault registra a criação das instituições morais, mesmo antes do surgimento da psiquiatria, ainda no século XVII:
Do mesmo modo, o Hospital Geral não tem o aspecto de um simples refúgio para aqueles que a velhice, a enfermidade ou a doença impedem de trabalhar; ele não terá simplesmente o aspecto de um ateliê de trabalho forçado, mas antes o de uma instituição moral encarregada de castigar, de corrigir uma certa “falha” moral que não merece o tribunal dos homens, mas que não poderia ser corrigida apenas pela severidade da penitência (FOUCAULT, 2005, p.74).
O modelo de atenção psicossocial advindo do projeto reformista prevê a existência do sofrimento de um sujeito, traçando uma estratégia de intervenção baseada nos próprios desígnios da cidadania e na diversificação dos atos de cuidado (YASUI, 2006). Para que efetivamente ocorresse o tratamento do paciente, fez-se necessário que se acolhesse as atitudes ditas como “de difícil manejo” ou como “falta de compromisso”, visto que podem ser reflexo direto da condição de resto que ele estava acostumado a assumir, localizando-se como discriminado e rejeitado por ser preto. Seu movimento em relação à vida familiar, social e, por conseguinte, ao seu local de tratamento, era reproduzir essa posição sintomática, a qual respondia de forma hostil e agressiva, uma vez que podemos localizar “a composição do sintoma de cada sujeito na sua forma de inscrição no social” (GENEROSO, 2014, p. 44). Ao se dirigir a uma instituição voltada à atenção a usuários de drogas, esse paciente pode encontrar ali um lugar onde terá uma existência a partir de uma prática clínica. Essa prática poderá levar a outras significações, que poderão conduzi-lo a um despertar, a fim de que ele possa encontrar outros caminhos que não aqueles das drogas como forma de apaziguar seu sofrimento. A permanência-dia, dispositivo terapêutico que acolhe o usuário de forma mais próxima e inclui a oferta de oficinas terapêuticas, atividades externas e demais ações de atenção psicossocial, constituiu-se em um lugar para que ele pudesse se tratar. Todavia o tratamento só será efetivo na medida em que os trabalhadores envolvidos na assistência não reforcem a condição de resto que o paciente se coloca, nomeado por ele como “discriminado pela cor” e, por isso, rejeitado – o que tornaria essa proposta terapêutica iatrogênica.
A nova resolução do MEC, instituindo a obrigatoriedade do internato de saúde mental dentro da carga horária curricular, em confluência com a metodologia da problematização, aproxima a realidade cotidiana dos usuários dos serviços com o acadêmico de medicina, de modo que este, saindo do papel de mero observador, é capaz de pensar as demandas e propor intervenções a essa parcela da população. População essa ainda fortemente estigmatizada, cujo convívio social lhe foi usurpado.
A aproximação dessa realidade dos usuários nos cenários de prática necessita de uma metodologia que possa alcançar a complexidade dessa clínica, ajudando na condução do tratamento a partir da singularidade de cada caso. Nessa lógica, a construção do caso clínico é uma potente ferramenta de trabalho em equipe, que valoriza o saber do paciente e não apenas uma leitura moral do seu comportamento. A construção vai ao encontro da história subjetiva do paciente, que vai além de simplesmente coletar dados históricos, tais como cenas, conteúdos e detalhes. A história subjetiva é constituída por todos os elementos que podem ser coletados do discurso do indivíduo que dizem respeito ao seu mundo psíquico, ao seu modo de funcionamento na vida. Ou seja, alcança outras dimensões além da biológica, admitindo a existência de um sujeito que enuncia os sintomas (FIGUEIREDO, 2004; ANDRADE, 2005). Essa perspectiva trouxe valiosa contribuição para a prática clínica futura do estudante de medicina, independente da área de atuação, pois deixa de lado a visão reducionista centrada no parecer biológico, e reconhece que o processo saúde-doença é transpassado por outras dimensões de um sujeito singular.
Nesse sentido, foi possível, a partir da aproximação entre o acadêmico de medicina e o paciente, recolher os elementos que possibilitaram a construção de um caso clínico. E, com base nisso, extrair, do caso, a lógica subjetiva que o perpassa. Voltando ao arco de Maguerez, pode-se então intervir no campo da realidade. Nesse caso, houve a transmissão do saber aprendido com o paciente à equipe, para que essa pudesse avaliar seu reposicionamento diante do caso. Durante a apresentação do caso pela acadêmica à equipe, foi possível transmitir que aprender a jogar com as peças pretas é um dos aprendizados adquiridos por meio da clínica do singular e que pode ter seus efeitos para o paciente, mas também para aqueles que dele se ocupam. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ANDRADE, Renata Dinardi Rezende. (2005) “Discussão x construção do caso clínico”. Revista Mental, v.3, n.4. Barbacena: UNIPAC. FIGUEIREDO, Ana Cristina. (2004) “A construção do caso clínico: uma contribuição da psicanálise à psicopatologia e à saúde mental”. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, ano VII, n. 1. São Paulo: Campus, p. 75-86.
FOUCAULT, Michel. (2005) A história da loucura: na Idade Clássica. Tradução de José Teixeira Coelho Netto. 8.ed. São Paulo: Editora Perspectiva. GENEROSO, C. M. (2014) Psicose, desinserção e laço social: um debate entre a psicanálise e o campo da saúde mental. Belo Horizonte: Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais. Disponível em: GENEROSO, C. M. (2014) Psicose, desinserção e laço social: um debate entre a psicanálise e o campo da saúde mental. Belo Horizonte: Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais. Disponível em: . Acesso em: 6 abr. 2018.
MENDES, Aline Aguiar. (2014) O efeito-equipe e a construção do caso clínico. Belo Horizonte: Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais. Disponível em: . Acesso em: 6 abr. 2018. MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO. (2014) Resolução nº 3, de 2º de junho de 2014. Institui Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Medicina e dá outras providências. Brasília: Diário Oficial da União, p. 8-11. PEREIRA, Dalma Alves et al. (2012) “Efeito de intervenção educativa sobre o conhecimento da doença em pacientes com diabetes mellitus”. Revista Latino-Americana de Enfermagem, v. 20, n. 3. São Paulo: Campus. SHIMOGUIRI, Ana Flávia Dias; PÉRICO, Waldir. (2014) “O Centro de Atenção Psicossocial como dispositivo social de produção de subjetividade”. Revista de Psicologia da UNESP, v.13, n.1, jan. São Paulo: UNESP.
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