ISSN: 1983-6007 N° da Revista: 25/26
Janeiro a Junho de 2015
 
   
 
   
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CACO1: TRABALHO DE CONSTITUIÇÃO DE SI MESMO FRAGMET: SELF-CONSTITUTION WORK

 
     
 

 

Resumo: Trata-se do relato de um caso de uma paciente psicótica que experimenta grande sofrimento ao deparar-se com a fragmentação da própria figura. A experiência evidencia o trabalho na psicose de constituição de uma imagem para si, algo que possa minimamente instituir um corpo que sustente o sujeito. Destaca-se a maneira como o próprio sujeito indica à analista a direção do tratamento, mostrando as ferramentas capazes de construir o caminho a ser trilhado na constituição de si, passando por diversos personagens e manejando diferentes recursos terapêuticos. Tal trajetória clínica é relatada a partir do acompanhamento realizado no contexto do Programa de Residência Multiprofissional em Saúde Mental.

Palavras-chave: psicose; constituição da imagem; manejo clínico. Abstract: This is a case study of a psychotic patient experimenting great suffering when faces the fragmentation of her own figure. The experience enlightens the work in the psychosis on constitution one image for himself, something that could minimally institute a body that sustain the subject. Stand´s out the form how the subject himself indicate the direction of the treatment, showing the tools able to construct a path to be followed in the process of his own constitution, passing through several characters and maneuvering different therapeutics resources. Such clinical trajectory is reported on the basis of the Multi-professional Residence Program in Mental Health.

Key-words: psychosis, constitution of the image, clinical maneuver. 1 Caco: termo técnico utilizado no teatro que designa “fala improvisada para consertar algum erro ou substituir algum elemento ausente, seja no texto ou na cena. Caco também é a fala inexistente no texto da peça, mas que o ator introduz no desenrolar da cena” (informações retiradas do site: https://www.desvendandoteatro.com). Consideramos pertinente o uso dessa terminologia no trabalho de construção subjetiva exercido pela paciente em questão CliniCAPS, Vol 9, nº 25/26 (2015) – Artigos 56 Cenografia2: Esmeralda3 chegou ao hospital psiquiátrico em março de 2018 trazida pelo SAMU que relatou invasão a prédio público e agressão aos funcionários do local, agitação psicomotora e discurso desconexo. Estava sem seus documentos, em estado descrito na evolução de admissão como “maniforme”, sendo a realização da entrevista “muito difícil”, segundo o acolhedor.

Nesta ocasião, Esmeralda não teve condições de fornecer dados pessoais em virtude do estado de agitação e confusão em que se encontrava. Encaminhada então para a enfermaria do hospital, ela é reconhecida por um dos médicos ali alocados que a nomeia e diz tê-la visto no CAPS (Centro de Atenção Psicossocial) de seu município, embora não tenha sido responsável pelo seu tratamento na época. A partir desta informação é possível localizar o contato da família de Esmeralda e obter panorama do acompanhamento psiquiátrico que havia realizado até então: trata-se de sua primeira internação na instituição psiquiátrica, com pouca adesão aos tratamentos prévios, muitas idas e vindas entre dois CAPS, um em Belo Horizonte e outro na região metropolitana. O contato com a família é realizado e, com certa dificuldade, consigo falar com a mãe de Esmeralda e agendar uma conversa. Obtemos mais informações sobre ela: Esmeralda tem 23 anos, é primogênita, estudou até a 7º série, tem uma filha de 5 anos criada pela tia materna, seu pai biológico está preso desde que era pequena, mora atualmente com o namorado, porém já viveu com a avó materna (que reside em Belo Horizonte) e com a família (mãe, padrasto e três irmãs mais novas) em um município na região metropolitana. Deixou de frequentar os serviços de saúde mental e de tomar a medicação há 1 ano. A mãe descreve Esmeralda como tendo comportamento “normal” quando criança, apesar de um pouco atrasada na escola. Aos 17 anos, aproximadamente, começou a apresentar comportamento “estranho”, iniciado após viagem com amigos à praia. Pouco tempo depois a família soube que estava grávida do seu namorado na época.

A mãe não associa a gravidez ao início do quadro, apesar da proximidade cronológica do início dos sintomas, fato que me provocou surpresa e atenção para um possível desinvestimento da mãe em relação a Esmeralda. 2 “Conjunto de elementos organizados no espaço cênico (palco), representando o lugar, ou lugares, onde acontecem as ações dramáticas interpretadas” (informações retiradas do site: https://www.desvendandoteatro.com). 3 Nome fictício. CliniCAPS, Vol 9, nº 25/26 (2015) – Artigos 57 Durante a entrevista percebo que a mãe me fornece informações vagas, imprecisas, com dificuldade em apresentar a história de Esmeralda e por vezes com dados contraditórios, como se estivesse distanciada afetivamente da filha. Uma tia materna diz acreditar que Esmeralda fez uso de drogas durante a viagem, o que poderia ter “causado” os comportamentos percebidos como estranhos, mas não sabe dizer com exatidão se ela já havia feito ou não uso de substâncias psicoativas. A mãe relata que ao longo da gestação a filha passou a escutar vozes, falar sozinha e alegar que estava sendo perseguida, com intensificação destes comportamentos conforme se aproximava o parto. Durante este período, Esmeralda fez uso de medicamentos em quantidade reduzida e sob monitoramento, segundo informações obtidas nos prontuários do serviço de saúde mental para crianças e adolescentes o qual frequentou.

Não foi indicada a internação psiquiátrica na época em razão da gravidez. Após o parto, os sintomas não cederam. Em uma ocasião, Esmeralda fez as malas dela e da criança, saiu de casa com a filha e retornou apenas à noite, sem as malas e dizendo coisas confusas. Eventos semelhantes a este e um contexto em que nenhum familiar poderia acompanhar Esmeralda ao longo do dia, fizeram com que a família optasse por entregar a criança, com 1 ano e 7 meses, aos cuidados da tia materna, sem o consentimento de Esmeralda. A mãe diz que Esmeralda é de muito fácil convivência quando não está “em surto” (sic), mas que quando em “surto” ninguém a aguenta e entra em conflito com todos na família. Descreve as crises como episódios de extrema agitação e irritabilidade ou de tristeza profunda e isolamento.

Explica que antes a família vivia em Belo Horizonte e que, quando se mudaram para uma cidade próxima, Esmeralda decidiu não ir junto, o que justifica que esteja referenciada em serviços de diferentes regiões e que oscile entre pelo menos duas moradias. Sobre as passagens de Esmeralda pelos serviços, a família informa que iniciou acompanhamento aos 17 anos, quando do surgimento dos primeiros sintomas. As informações prestadas pelo serviço são parecidas às fornecidas pelos familiares, que descrevem comportamentos bizarros e falas desconexas após retorno da viagem, além das hipóteses diagnósticas de F.29 (Psicose não-orgânica não especificada) e F.39 (Transtorno do humor não especificado). Após completar 18 anos foi referenciada no CAPS de sua regional em Belo Horizonte e posteriormente no da região metropolitana, quando sua mãe se mudou. Nos dois CAPS pelos quais passou não consegui contato com suas referências técnicas, apenas plantonistas, de modo que, além de uma evidente recusa de adesão aos serviços, não pude conhecer muito da história do tratamento. CliniCAPS, Vol 9, nº 25/26 (2015) – Artigos 58 A equipe do hospital então se voltou para as informações trazidas pelo médico que a reconheceu em sua chegada na instituição, que a descreve como uma paciente tranquila, calada, solícita com os demais usuários e muito zelosa de sua própria aparência, comportamentos que diferiam muito dos apresentados durante a internação. A família não possui informações atualizadas sobre a rotina da usuária, já que esta havia se mudado novamente para Belo Horizonte com o namorado.

Não sabem se ela fez ou não acompanhamento neste período. O namorado foi desaprovado pela família por fazer uso de drogas e apontado como influência para que Esmeralda também iniciasse, aos 20 anos, uso de maconha, loló, cocaína e álcool. Ao contrário da tia materna, a mãe acredita que Esmeralda nunca havia usado tais substâncias antes do encontro com este namorado. Texto4 As primeiras conversas com Esmeralda foram muito proveitosas para estabelecer a transferência, porém forneceram poucos elementos da história dela. Ainda se apresentava extremamente agitada, às vezes hostil, confusa sobre onde estava e em relação às pessoas que a rodeavam. Prontamente, a usuária passa a me chamar de Geane, nome de uma amiga que mais tarde a mãe confirmou parecer-se comigo. Da mesma forma, identificava muitas pessoas ao seu redor como conhecidas: uma outra usuária era sua filha; um técnico de enfermagem seu pai; uma funcionária, sua tia. Comunicava-se ora balbuciando conteúdos desconexos, ora gritando, pulando e correndo pela enfermaria. Quando eu dizia que não a escutava, Esmeralda me respondia que o remédio a deixava assim, explicando a razão de abandonar os medicamentos porque “eles me deixam abobada”. A dificuldade de comunicar-se, porém, não resistiu à primeira visita da mãe. Ao vê-la, Esmeralda começa a chorar e fala à mãe muito claramente sobre o que lhe dói: o sentir-se abandonada por ela, as situações de violência na família, a impotência sentida diante da situação.

Aos poucos surgem as primeiras demandas dirigidas ao Outro, como a ausência da mãe que a visita pouco e vez ou outra desliga o telefone quando percebe que a ligação é do hospital e deixa de atender. Os dentes que lhe faltam começam a incomodá-la muito, a ponto de agitar-se demandando seus implantes dentários. Os documentos passam a fazer falta, pois sem eles não é possível obter a medicação necessária via Secretaria Estadual de Saúde. Esmeralda 4 “Obra literária específica para o teatro, contém os diálogos e as indicações de cena. Sozinho, o texto é apenas literário, transformando-se em teatro quando encenado” (informações retiradas do site: https://www.desvendandoteatro.com). CliniCAPS, Vol 9, nº 25/26 (2015) – Artigos 59 reclama do tratamento que recebe pelos funcionários, das constantes contenções, e, sobretudo a falta da filha.

Agita-se constantemente, com rompantes de agressividade e é considerada de difícil manejo pela equipe da enfermaria. Envolve-se em brigas com outras usuárias por reconhecer nelas pessoas com quem tinha conflitos ou por acreditar que eram as responsáveis pelo afastamento da filha, chegando ao ponto de passar alguns dias em outra enfermaria do hospital para sua própria segurança. Sinaliza através de suas construções abusos e assédios de ordem sexual e moral sofridos, porém não consegue me responder quando peço que explique melhor.

Ante estes acontecimentos de sua vida e período de internação, Esmeralda sentia-se muito injustiçada e era impactante testemunhar este sofrimento enunciado aos gritos. Viganó (1999, p.56) propõe como abordagem clínica a construção do caso, isto é, o trabalho de quem escuta em costurar os elementos subjetivos trazidos pelo paciente “para que o analista esteja pronto a escutar a sua palavra, quando esta vier”. Esmeralda dizia “eu apanho e ainda sou amarrada”, “levaram minha filha e me amarraram aqui”, “jogam coisas estragadas dentro de mim”. Viganó (1999, p.46) chama de diagnóstico do discurso este que, através da construção do caso, “(…) tende a trazer à luz a relação do sujeito com o seu Outro, portanto tende a construir o diagnóstico do discurso e não do sujeito”. Mais além do diagnóstico de estrutura, o diagnóstico do discurso permitiu entender como Esmeralda apreendia o Outro naquele momento, através de seus gestos, reações, falas, comportamentos e expressões. O Outro se apresenta para Esmeralda como um algoz que a trata com injustiça, que faz uso de seu corpo à sua revelia. O Outro terrível e gozador, destacado por Quinet (1997), é este que toma o sujeito psicótico como objeto de uso e gozo próprios. É um Outro maciço que “não é barrado, é consistente (…) por carecer do significante da lei, é um Outro absoluto ao qual o sujeito está submetido”(Quinet, 1977, p.17). É o Outro característico da estrutura psicótica, devido à falta da castração simbólica.

Esmeralda resistia durante todo o período de contenção, dizia que seus braços estavam sendo quebrados, seu corpo invadido, que roubavam sua filha e que a estavam punindo. Relatou por diversas vezes ter sentido que fora abusada durante a realização da contenção. Como aponta Zenoni (2000), instituição e clínica psicanalítica em suas manifestações mais tradicionais apresentam ou já apresentaram atuações diferentes, mais precisamente opostas, no acolhimento de um indivíduo/sujeito. Enquanto a instituição representava uma “necessidade social, (...) necessidade de uma resposta social a fenômenos clínicos, a certos estados da psicose, a certas passagens ao ato”(Zenoni, 2000, p. 13-14), a escuta psicanalítica CliniCAPS, Vol 9, nº 25/26 (2015) – Artigos 60 se dirigia ao sujeito e a todas as construções por ele realizadas, a todas estas manifestações sintomáticas. A problematização dessa relação entre instituição e clínica psicanalítica, tal como propõe o autor, é que se coloque em questão “não (…) qual psicanálise praticar na instituição, mas qual instituição praticar na psicanálise, [o que] supõe reconhecer a motivação clínica da instituição” (Zenoni, 2000, p. 16).

Existe nesta configuração uma dimensão de abrigamento e função social, mas também de escuta e atenção ao caso em sua singularidade. Há que se perguntar se todos os sujeitos em agitação psicomotora experimentam da mesma forma a contenção e estar atento ao discurso construído a partir desta experiência. Para Esmeralda, durante o período daquela internação, a resposta protocolar da instituição ao que ela apresentava como “comportamentos inadequados” fez com que se esvaziasse de alguma forma a dimensão clínica e permanecesse apenas o Outro Institucional concreto, invasor e tirânico. Esmeralda convocava então que este Outro fosse regulado, demandava alguma intervenção. Escutando seu sofrimento, assumi que meu papel era então ocupar outro lugar que não este, “não presentificar a vontade do Outro, mas (...) presentificar um Outro que é ele mesmo submetido a uma lei” (Zenoni, 2000, p. 22). Eu teria que entrar em cena como Outro esvaziado de saber: Essa posição de um sujeito suposto não saber é uma posição favorável para encontrar um sujeito que sabe o que acontece com ele, que é ele mesmo a significação do que lhe é endereçado enigmaticamente. É uma posição favorável para encontrar esse sujeito, sem alimentar uma posição intrusiva, persecutória de transferência (Zenoni, 2000, p.20).

Quanto ao meu papel no processo clínico, este seria sinalizado por Esmeralda. Teria que praticar o que Miller chama de objeto-psicanalista: “versátil, disponível, multifuncional (...). O psicanalista oferece deste modo, com o objeto-psicanalista, um lugar vacuolar, um espaço entre parênteses, onde o paciente tem um lazer, por um tempo restrito, de ser sujeito, quer dizer, de faltar ser aquilo que, por sinal, o identifica (Miller, 1999, p.54). Passei então a acompanhar Esmeralda durante as contenções que eu presenciava. Descrevia como estavam seus braços, anunciava se chegava alguém, permanecia ao seu lado secretariando o contato com o ambiente que se apresentava como tão ameaçador. Quando Esmeralda pedia que eu retirasse as contenções, sempre respondia que eu não tinha esta possibilidade, que não era uma decisão que estava ao meu alcance, demonstrando que eu também estava submetida à lei. Solicitava, entretanto, que ela me apresentasse um CliniCAPS, Vol 9, nº 25/26 (2015) – Artigos 61 caminho: “vou ficar aqui com você, o que posso fazer para te ajudar?”. Nas primeiras tentativas, Esmeralda sequer me escutava, porque não parava nem por um instante de gritar para que a soltassem.

Nas contenções posteriores, passou a solicitar que eu permanecesse com ela durante o tempo em que ficava contida. Às vezes pedia que eu verificasse seus pulsos, se estavam roxos, se estavam quebrados, pedia água. Com o decorrer do tempo, Esmeralda passa a solicitar minha presença durante as contenções com mais frequência, às vezes queria contar sua versão, “deixa eu te explicar porque me amarraram, não tem nada a ver com o que tão falando”, às vezes pedia que eu colocasse canções evangélicas em volume máximo ao lado de seu ouvido no travesseiro. Figurino5 Ao longo do tratamento vão surgindo várias questões em relação à própria identidade e imagem. Esmeralda recorda-se de ter atirado seus documentos por cima de um veículo do “MOVE” e, mais tarde, explica que se sentia muito mal em ter uma carteira de identidade sem sua assinatura, apenas com a impressão digital. Contava que, ao sair com amigos, apenas ela apresentava o documento sem sua assinatura e temia que as pessoas achassem que era "burra". A mãe conta que Esmeralda frequentemente perdia seus documentos, e como em várias destas ocasiões encontrava-se em crise e sem condições de assinar o próprio nome, acabou-se por identificá-la pela digital. Quando questiono se sabe escrever responde que sim, pede um papel e o demonstra. Passamos então a “treinar” a assinatura para seu próximo documento de identidade. A questão da identidade perpassa todo o tratamento, pois é o que sinaliza a dificuldade de Esmeralda em relação à própria imagem, a falta de elementos de que dispõe para falar sobre si. Quinet (1997) coloca que o sujeito psicótico, antes do surto, viabiliza sua existência no mundo através do registro imaginário, pois carece da referência simbólica. É a entrada do sujeito no registro simbólico o que possibilita a constituição do Eu, a realização da separação do sujeito em relação ao Outro. O psicótico não estabelece tal separação, justamente pela falta de inscrição da metáfora paterna que regula a relação do sujeito com o mundo, então irá tomar o outro como "espelho e modelo de identificação imediata" (Quinet, 1997, p.18-19). É uma relação não mediada pela linguagem em que o semelhante é 5“Figurino é o conjunto de vestimentas e acessórios usados pelos atores em cena. O traje usado por um personagem de uma produção artística. Mais que uma roupa, o figurino possui funções específicas no contexto, como marcar a própria presença, chamar a atenção, dar destaque a determinadas partes do corpo” (informações retiradas do site: https://www.desvendandoteatro.com). CliniCAPS, Vol 9, nº 25/26 (2015) – Artigos 62 apreendido apenas em sua imagem, que por sua vez reflete o próprio sujeito. Esta manobra Quinet (1997, p.18) chama de "bengalas imaginárias", compensação que coloca o sujeito em situação pouco estável que a qualquer momento pode chegar a falhar.

O surto é o momento em que este apoio vacila e o sujeito se depara com o vazio simbólico que, para ele, é inexplicável. Esmeralda se identifica às demais usuárias da enfermaria, as quais considera bonitas. Diz que está no “Big Brother” e que agora sim iria “deixar as recalcadas no fundo do poço”. Quando diz que “é a outra usuária” e não que “gostaria de ser como aquela pessoa”, está dizendo desta continuidade entre ela e o Outro, demonstrando o "transitivismo" (Quinet, 19997, p.18) presente nesta relação, ou seja, a falta de distinção entre ela e o Outro. Sua certeza de ser a participante do "Big Brother" que assiste na televisão é tão grande que se alegra em poder deixar as "inimigas no chão" e planeja mudar-se para "uma quitinete no Rio de Janeiro". Nos raros momentos em que se depara com os fragmentos da própria imagem, Esmeralda sofre com o que enxerga. Sente que pode ser preterida por sua cor de pele e ao falar sobre a alta hospitalar diz que “não vou ser mais piriguete, vou vestir chique”. No processo de confeccionar nova carteira de identidade para ela, temos que tirar fotografias suas. Ao olhar para uma delas Esmeralda se joga ao chão chorando e diz “estou com cara de sofrida”. Na história familiar o sentimento de rejeição também aparecia. Relata que a mãe prefere todos a ela, que na presença de visitas tinha que sair da própria cama para que outra pessoa dormisse. Conta que suas irmãs a ignoravam e as pessoas achavam que “é louca”, e era este o motivo de sua recusa em usar o transporte de busca ativa do CAPS.. Mantinha este discurso ambivalente, ora “deixando as recalcadas no chão”, ora sofrida, invadida, ignorada. A maior parte de suas falas oscilavam entre estes dois pontos.

O discurso delirante de Esmeralda trazia em si uma tentativa desesperada de dar conta da devastação que sentia ao se deparar com um corpo fragmentado e rejeitado. Quinet (1997) explica a função da construção delirante: O delírio é, portanto, não algo a ser combatido para ser destruído, mas é o próprio trabalho de elaboração do sujeito para viver num mundo suportável. (...) Esse trabalho da explicação do universo, equivalente ao trabalho delirante, é o único meio pelo qual o sujeito pode voltar a encontrar sentido na vida (Quinet, 1997, p. 57-58). CliniCAPS, Vol 9, nº 25/26 (2015) – Artigos 63 A principal questão que surgia para mim ao escutá-la era: como ajudar esse sujeito a aparecer, mesmo que delirante? Como ajudá-la a retomar elementos mais próximos de sua própria história, mais próximos de sua corporalidade, para colocar uma barra a esse Outro que se mostra devastador? Será que a única forma de satisfazer o desejo do Outro seria que Esmeralda se fundisse a uma personagem do Big Brother? A direção a ser seguida apenas Esmeralda poderia me indicar e ela mesma já havia iniciado o trabalho de colar, pedaço a pedaço, seu ser estilhaçado. Em uma das oficinas de música que propus dento da enfermaria, Esmeralda me pediu incessantemente que colocasse para tocar uma canção chamada "Suelen", afirmando "essa música fala de mim". Após buscar diversas vezes e com a ajuda de outras usuárias, encontrei a canção que se chama "Outro Olhar" do Mc Martinho. Esta música diz: "Vim aqui, contar uma história, que no meu cotidiano, já é normal, de uma mina criada em favela, que almejava alcançar seu so-social. Uma menina ainda muito adolescente, da pele negra, conhecida como Suelen, ambiciosa, não quer mais a vida sofrida, confunde a realidade com a fantasia, (...) Mais pra subir de vida não tinha condição pra piorar ela tá grávida de um vacilão se sentindo perdida e cheia de revolta imaginou que ia embarcar num caminho sem volta. (...) Ela queria poder, queria brilhar, a mina Suelen ficou perigosa, perdeu o olhar de inocente, virou criminosa.

” Ao escutar a letra, percebi que abordar temas próximos ao contexto de Esmeralda seria um caminho através do qual poderia ajudá-la a criar um esboço de identidade. Além da assinatura para a carteira de identidade, continuamos "treinando" o falar sobre si. Esmeralda fazia algum comentário sobre o baile funk e eu lhe perguntava quais roupas gostava de usar, quais músicas eram melhores para dançar, qual baile frequentava. Se me informavam que ela esteve aos beijos com outro usuário, perguntava sobre seus CliniCAPS, Vol 9, nº 25/26 (2015) – Artigos 64 relacionamentos anteriores. Quando me pedia para trazer-lhe doces, eu perguntava o que gostava de comer, se sabia cozinhar, quais atividades domésticas ela costumava realizar. Pouco a pouco, Esmeralda vai construindo uma colagem que explica melhor sua existência, que viabiliza de forma mais eficaz seu ser neste mundo. O que ela constrói não é exatamente o que o Outro quer dela, ou seja, ela não é branca, famosa e rica. O que se forma é uma identidade sustentada pelo seu entorno e sua história, manobra que faz com que o Outro se apresente menos maciço, menos exigente de tudo aquilo que ela não é. Iluminação6 Em um dos atendimentos, perguntei à Esmeralda se já havia estado na batalha de MC's que ocorre embaixo do Viaduto Santa Tereza no centro de Belo Horizonte. Seu rosto se iluminou, deu um sorriso e disse que sim. Conversamos sobre o evento, me contou que ia sozinha, pois não tinha muitos amigos e disse o nome artístico que gostaria de usar se fosse MC. Neste dia eu tinha em meu celular algumas bases de rap que pretendia utilizar na oficina de música.

Como Esmeralda ainda não falava muito organizadamente sobre si, propus colocar para tocar a base do rap e que ela construísse uma letra para aquele som. Ela pareceu gostar muito da ideia e compôs, no improviso, diversas letras. Falou sobre religião, sobre seu pai, sobre relações pessoais, sobre sexo e times de futebol. Esmeralda disse ali muitas coisas que nunca havia falado antes, falou sobre sua história e de como se sentiu diante de algumas situações e pediu que eu gravasse tudo para que ela pudesse escutar depois. Com o avanço do tratamento, Esmeralda parece cada vez mais resgatar traços que podem ter lhe ajudado a se sustentar durante parte de sua vida. Aquele apoio construído para dar conta do inexplicável, perdido no momento anterior à internação, aos poucos vai tomando forma em sua nova versão. Passa a cuidar mais da própria aparência e se comporta de maneira afável a maior parte do tempo. Volta a se aproximar da família e faz considerações sobre como seria voltar a viver com ela. Pensa no namorado, reflete sobre esta relação. Nos atendimentos, fala mais sobre si e apresenta demandas. Em ocasiões me aborda no corredor para dizer que pensou sobre o que foi conversado anteriormente e que queria compartilhar seus planos.

Esmeralda estava construindo, falando sobre si e marcando para a equipe como seria o tratamento a partir do que era possível para ela. 6 “A iluminação pode dar ênfase a certos aspectos do cenário, pode estabelecer relações entre o ator e os objetos, pode enfatizar as expressões do ator, pode limitar o espaço de representação a um círculo de luz e muitos outros efeitos” (informações retiradas do site: https://www.desvendandoteatro.com). CliniCAPS, Vol 9, nº 25/26 (2015) – Artigos 65 Nas últimas semanas de internação, Esmeralda passa a fazer planos sobre sua alta durante os atendimentos. Menciona várias vezes que tem "problema de cabeça", mas pondera que muitas pessoas por aí "são mais doidas do que eu". Ela fala que só queria que as pessoas tivessem mais paciência com ela, que a tratassem melhor. O Outro que antes gritava que Esmeralda era louca, passou a ter furos, já que este Outro em alguns momentos estaria "mais louco" que ela. A instituição não é mais percebida como prisão, um "lugar onde me torturam", como dizia em várias conversas com a mãe pelo telefone. O hospital passou a ser um lugar de tratamento, do qual queria desesperadamente sair, mas reconhecido como espaço de recuperação. Esmeralda iniciou o movimento de buscar quais de suas escolhas a haviam levado até ali. Pensava sobre sua saída prematura da escola, sobre ter engravidado muito jovem e sobre o uso de drogas. Um dia me disse "eu já sei o que me deixa louca.

É a droga, eu não vou mexer com isso mais não". Outro dia dizia que o que a deixava "louca" era não trabalhar e que, mesmo que conseguisse o benefício que estávamos pleiteando, continuaria vendendo balas no sinal. Esmeralda queria, além disso, voltar a estudar, ir ao baile funk que gostava de frequentar, cuidar do sobrinho que estava prestes a nascer, realizar tarefas domésticas, tomar açaí... era evidente e admirável sua animação em poder voltar a decidir o que fazer da própria vida. Em junho de 2018, Esmeralda teve alta, após mais de três meses de internação. Nas semanas anteriores havia definido, sobre seu próprio projeto terapêutico, que não gostaria de seguir tratamento no CAPS, por diversas razões que apresentou para justificar sua decisão.

Disse também que não tomaria nenhuma medicação, além daquela que estava tomando naquele momento, que não queria mais "estar dopada". Nos contou que iria sair com os amigos no fim de semana, mas que não gostaria de usar drogas. Planejava não corresponder às provocações que lhe fizessem, queria "ficar tranquila". Apontou que preferia seguir tratamento no ambulatório do hospital, com o médico que já a atendia, planejava seu caminho até o hospital e pensava em vender balas antes e depois da consulta. Como sua internação havia sido longa, pensamos juntas como poderiam transcorrer os primeiros dias após a alta e articulamos algumas possibilidades de cursos e oficinas próximas à sua casa. Esmeralda disse mais de uma vez que não compareceria à Permanência Dia do CAPS por preferir realizar tarefas domésticas. Falamos então sobre as tarefas pelas quais se responsabilizaria. Durante o dia Esmeralda maquiou-se, cuidou do cabelo, vestiu a roupa que gostava.

Despediu-se de todos na enfermaria e telefonou para a avó para combinar uma visita no fim de semana. Naquele momento não sabíamos se o tratamento seria seguido, se seu retorno à casa da mãe daria certo, se o arranjo que havia feito para dar sentido ao furo CliniCAPS, Vol 9, nº 25/26 (2015) – Artigos 66 simbólico funcionaria por algum tempo. Mas certamente um trabalho importante foi realizado durante a internação, a tentativa de reconstrução por Esmeralda do fim de seu mundo.

Referências bibliográficas: MILLER, Jacques-Alain. (1999). As contra-indicações ao tratamento psicanalítico. Opção lacaniana – Escola Brasileira Internacional de Psicanálise, nº 25, pp.52-55. QUINET, A. (1997). Teoria e Clínica da Psicose. Rio de Janeiro: Forense Universitária. VIGANÒ, C. (1999) A construção do caso clínico em saúde mental. Psicanálise e Saúde Mental - Revista Curinga, Belo Horizonte, EBP/MG, n. 13, p. 50-59. ZENONI, A. (2000) Psicanálise e Instituição: A segunda clínica de Lacan. Abrecampos. Revista de Saúde Mental do Instituto Raul Soares, Belo Horizonte, n. 1, pp.09-51 Recebido em: Outubro de 2018 Aceito em: Outubro de 2018

 

 
 






 
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